No dia seguinte, depois do almoço, lembrou-se Aurélia de sua resolução de véspera.
Àquela hora o marido estava na repartição, e já o criado devia ter acabado de fazer o
serviço dos quartos; por conseguinte podia sem despertar a atenção realizar seu intento.
Deu volta à chave da porta que um mês antes fechara-se entre ela e seu marido; abriu
de leve o reposteiro de seda azul para certificar-se de que ninguém havia no aposento; e
trêmula, agitada por uma comoção que lhe parecia infantil, entrou naquela parte da casa,
onde não tornara depois de seu casamento.
Que horas encantadoras passara ela ali nos dias que precederam a cerimônia, quando
ocupava-se com o preparo e adereço desses aposentos, destinados ao homem a quem ia
unir-se para sempre, embora para dele separar-se por um divórcio moral, que talvez fosse
eterno!
O sentimento que possuia Aurélia e a dominava naquele tempo, ela própria não o
poderia definir, tão singulares eram os afetos que se produziam em sua alma.
Ao passo que ela acariciava com um acerbo requinte a desafronta de seu amor
ludibriado desse homem, que a traficava, vinham momentos em que alheava-se
completamente dessa preocupação da vingança, para entregar-se às fagueiras ilusões.
Tinha sede de amor; e como não o encontrava na realidade, ia bebê-lo a longos
haustos na taça de ouro, que lhe apresentava a fantasia. Essas horas vivia-as com seu ideal;
e eram horas inebriantes e deliciosas.
Nelas foi que a jovem mulher se esmerou em ornar suas salas e gabinetes. Sonhava
que iam ser habitados pelo único homem a quem amara, e que lhe retribuía com igual
paixão. Queria que esse ente querido achasse como que entranhada na elegência dos
aposentos, sua alma palpitante, que o envolvesse e encerrasse dentro de si.
Ao rever o lugar e objetos, que tinham sido companheiros daquelas cismas e ardentes
emoções, Aurélia cedeu um instante à mágica influência de recordos, os quais se
desdobravam como as névoas aljofradas, que empanam a luz do sol e mitigam-lhe a calma.
Arrancando-se afinal a esse enlevo de um passado, que nem ao menos era real, e só
existira como uma doce quimera, a moça percorreu então o aposento, e volveu um olhar
perscrutador.
Notou o que aliás era bem visível. O toucador estava completamente despido de
todas as galantarias, de que ela o havia adornado com sua própria mão. Parecia um móvel
chegado naquele instante da loja. Os guarda-roupas, cômodas secretárias, tudo fechado, e
na mesma nudez, que denunciava falta de uso.
- É por isso... murmurou a moça consigo.
O criado não suspeita o motivo, e atribui à mesquinheza.
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Senhora- José de Alencar
RomanceOBRA DE DOMÍNIO PUBLICO *NÃO SOU A ESCRITORA DA OBRA, ESTOU APENAS REESCREVENDO PARA O APLICATIVO CLÁSSICO DA LITERATURA BRASILEIRA