#34: Na cela com o Jaguadarte.

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- Aaaaaaaaaah! - O grito horrível pode ser escutado até da minha cela, a mais distante de todas. Parecia que alguém estava morrendo.

— O que foi isso? — Carlo, ou jaguadarte, levantou-se num salto, com os pelos da nuca eriçados como o de um gato.

— Um dos prisioneiros gritando. Deve ter se machucado nas grades, não sei. — Olho imediatamente para minha mão. As bolhas ainda estavam lá, da minha queimadura do primeiro dia. Olho pro menino pálido na minha frente, e  lembro que, na verdade, ele é o Jaguadarte. Sinto um arrepio por dentro. Sabe aquela frase "O perigo mora ao lado"? Pois é, literalmente. E aqui estou, indefesa.

— E a história? Vai me contar?

— Ai meu Deus, que menina apressada. Vamos lá. A Rainha de Copas me tratava como um rei. Que mulher luxuosa, aquela. E sempre que ela desejava alguma coisa, eu concedia. Jogar um jato de fogo nos seus porcos, ou arrancar a cabeça de algum traidor. Mas um dia ela me pediu a única espada que me feria. A única coisa que eu não podia dar! Na minha forma humana, falei com um ferreiro chamado Jormidar, e ele criou uma réplica da espada original, de acordo com minhas instruções. Eu comprei e dei pra Rainha de Copas. Um dia, ocorreu uma batalha, que ficou conhecida como "Glorian Day" pelos nossos adversários. A rainha branca tentava matar a rainha vermelha. Alice tentava me matar. No final, prenderam minha rainha na torre mais alta do castelo mais alto, uma torre sem portas nem janelas. Alice arrancou minha cabeça, mas como aquela espada não me feria, tempos depois ela regenerou. Mais tarde, eu voltei para me vingar. Sequestrei a menina Alice, levei-a para o alto de uma montanha distante, e a torturei com as minhas próprias garras. Depois de ter feito os trabalhos, ela desmaiou de dor. Carreguei ela, e a pus numa caverna. Me transformei em humano para caber lá dentro.
Só que enquanto isso, acontecia uma coisa curiosa...as barreiras entre os reinos caíram. Diversos mundos se misturaram. A magia foi tão grande que eu pudi
Sentí-la em mim. Acho que todos os cidadãos de Isleryn sentiram.
De repente, Branca e os sete anões andavam lado a lado com soldados-carta. Criaturas que não tinham nada a ver foram vistas juntas. Surgiram os Slapkaff, os oglilobos e as Mirtíades: seres nunca vistos antes. Tudo virou de ponta-cabeça. E Malévola me encontrou. Lutamos, punhal contra cajado. Até a arma dela, o cajado, levava vantagem sobre mim, mas poucos tem a agilidade e a força de um dragão. Foi nessa luta que ganhei essa cicatriz no rosto, e acho que Alice acordou no meio da confusão, e fugiu. Eu arranquei um dos chifres de Malévola. Só que bem ali, no chão, se materializou uma mulher negra e jovem, com um olho grande e curioso, sim, olho, pois o outro estava com um tapa-olho pirata. Uma coroa simples na sua cabeça, com seu cabelo preto amarrado num coque. Era Tiana. Não prestamos muita atenção, até que ela gritou, e com sua voz chegou um mar de sapos saltitando no chão. Foi um truque simples, e até bobo, mas funcionou: Malévola tropeçou. Sim, nem ela escapa de um escorregão. Ninguém na verdade: Podia ter sido eu que tivesse escorregado, mas como não foi, saí correndo, pulei na primeira janela que vi, e depois de alguns segundos de queda, me transformei num dragão cor de prata, com dentes do comprimento de uma  vara de pescar e afiados como navalhas, asas com o dobro do meu tamanho, garras negras maiores que meus dentes, e um rabo com um espinho na ponta: uma defesa natural que me dá equilíbrio ao caminhar, e uma arma extra em batalha, pois libera um veneno mortal, como os escorpiões.  —
Percebo que ele se empolgou um pouco na descrição de si mesmo, mas não falo nada. Ele torturou Alice quando ela era apenas uma criança. E está contando isso calmamente pra mim agora.
— Porque você acha que quem nos prendeu aqui, me colocou na mesma cela que você? — Pergunto, tentando fazer minha voz soar confiante.
— Creio que nós dois sejamos importantes para Ela.
— Ela quem?
— Acho que você já sabe, não Diana?

Fico uns segundos encarando a parede escura, enquanto reflito, quem faria uma coisa dessas? Ainda dá pra ouvir os lamentos dos prisioneiros mais inquietos.
A menina dos coturnos?
Outro nome me vem à mente.
Malévola.

Numa estranha sintonia, sinto uma presença atrás de mim. Estou virada para a parede do fundo da cela, com as grades nas minhas costas.Fico uns segundos olhando pra frente antes de me virar.
Do lado de fora da grade, estava a menina dos coturnos, com roupa e maquiagem diferentes, mas no mesmo estilo. Era ela. E ela usava o mesmo cajado que usou na luta com Jasmine. Igual
o da história do Jaguadarte. Será ela a filha da Malévola?
Ela continuava calada, só nos olhando. Junto coragem, e...
— O que foi? — Falo com um pingo de voz, mas falo.
Ela se vira pra mim, mas não parece irritada.
— Só estou olhando pra vocês, porque vocês são lindos.  —

Senso de humor é uma droga quando você não ri.

— É brincadeira — Ela tenta explicar. — Ah, esquece.
Ela abre a nossa cela, e estala os dedos.
Imediatamente cordas prendem meus pulsos e o de "Carlo", e essas cordas são ligadas a garota, enquanto ela nos puxa, como cachorros na coleira.
Enquanto ela anda na nossa frente, fico imaginando que se minhas mãos não estivessem amarradas eu poderia simplesmente sacar uma faca e matá-la, e ela nem ia perceber. E depois fico com ódio de mim mesma, por ter planejado um assassinato na minha cabeça, e ter julgado Carlo por ter torturado Alice.
Mas até que a ideia de desamarrar minhas mãos não é má ideia...
Enquanto ela nos conduzia por um corredor, me concentro na imagem de vulcões, de fósforos sendo acesos. Então simplesmente faço minha mãos pegarem fogo. Agora é tão natural quanto mexer um braço ou uma perna.

Quando minhas mãos pegam fogo, as cordas que a prendiam viram cinzas. Imediatamente jogo o maior fogo que consigo fazer nas costas da garota, que dá um berro. Ela dá um giro de cento e oitenta graus, e com o cajado estendido, golpeia primeiro Carlo, que cai, e depois a mim. O cajado atinge as minhas costelas e uma dor terrível me atinge. É aquela agonia tão horrível que você sente vontade de morrer.
Então tudo começa de novo. A fumaça negra, os pequenos tornados de escuridão preenchem o corredor e me cercam. Sinto aquele característico frio na barriga.

O jaguadarte jazia desmaiado no chão. O cajado bateu na sua cabeça, e ele desmaiou.

— O que está acontecendo aqui?—  Ouço a voz velha, porém dura e confiante.
Não tinha dúvidas. Aquela mulher era a Malévola.
A dor estonteante nas minhas costelas continuava, me impedindo de pensar direito.

Malévola estalou os dedos, e toda a escuridão que a possível filha dela criou, desapareceu.
Mas a garota, vermelha de raiva, levantou o cajado novamente, e antes que a mãe pudesse evitar, ela golpeou minha cabeça.
Perdi a consciência antes de sentir o baque no chão.

Ao menos, a dor sumiu. Minha visão escureceu segundos depois.

E num instante, eu estava em outro tempo, outro lugar.

*Continua...

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