CAPÍTULO I SEU MARIO

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Ia pelo Beco do Bagaço, tateando as paredes, assobiando, arrastando as sandálias, e conversando sozinho. Quando se ouvia aquela lengalenga logo se deduzia tratar de ninguém menos que seu Mário. Quando dava tempo, os meninos saíam pelas portas para arreliá-lo:

-Seu Mário, tua sombra ta lhe seguindo...

E seu Mário, arretado da vida, tentava ver quem era para pegar das orelhas, mas não via. Seu Mário, via quase nada. Tinha lá uns trinta por cento da visão, e quando virava, pensavam os meninos que estava caçando a sombra.

Seu Mário não usava óculos, apesar das recomendações que faziam os médicos que o atendia quando ia ao Hospital Municipal reclamando que os olhos doíam. Dizia que óculos era coisa do capeta:

_ já viu botar pedaço de vidro nos olhos e clarear as vistas?! Além do mais quem foi que disse que não enxergava? Via o que queria, dizia ele.

Um dia levou um tropicão e se esborrachou todo. Ralou o queixo, o cotovelo, bateu o joelho. Ficou um bocado de tempo sem sair de casa.

_ Seu Mário, o senhor não viu a guia da rua, não? Perguntaram.

_ Vi, é que eu gosto de fazer mergulho no chão- respondia sarcasticamente.

_ Tu tens que usar óculos, seu Mário.

_ Nem que eu fosse cego- e o povo caía na risada.

Seu Mário era um mulato de uns setenta anos. Alto, magro e torto. Andava já bem encurvado, com enormes dores nas costas. Vivia graças a aposentaria que conseguira aos sessenta, e que mal dava para comprar remédios e comida. Exatamente 430 reais, isto, porque tinha feito um empréstimo consignado na Caixa Econômica Federal para comprar uma burrinha que o levasse vez ou outra a casa de seu filho Raimundo em Bate Pau e a outras bandas também.

À burrinha deu-lhe o nome Maria, que era também o nome de uma velha namorada que o abandonara nas vésperas do casamento. Agora, pense numa burrinha inteligente. Levava seu Mário em qualquer lugar. Não precisa dizer que não tinha o melhor dos guias em seu Mário, que reconhecia isso e não botava nenhum arreio em Maria e nem precisava. Se fossem para Bate Pau, Maria seguia pela estrada como quem vai de táxi a algum lugar, tamanha exatidão no caminho. Ia para Riachão com a mesma tranqüilidade. Pra todo canto Mário e Maria iam sem pestanejar, tendo em vista que a parceria só dava certo por causa da destreza de Maria que já vinha com o GPS embutido, como dizia o Caíque, netinho de seu Mário.

Seu Mário morava na Rua do Morais, bem atrás da Igreja, numa casa muito simples de quarto, sala, cozinha e banheiro. No quarto a cama só fazia companhia à cômoda com meia dúzia de peças de roupa, e ao pinico debaixo da cama para as costumeiras escarradas do velho. A cozinha era ligada à sala, com meia parede fazendo divisão, ao que Dilce, sua nora, brincava a dizer se tratar de uma cozinha americana. Embora de americana mesmo não tivesse nada. Uma mesinha de madeira bruta feita pelas mãos de seu Mario, uma geladeira e um fogão, que nem era usado porque a nora sempre lhe trazia o que comer. E na geladeira só garrafas de água pra tentar matar a sede interminável que tinha. A sala tinha porta e janela que davam pra rua e tinha por composição apenas um sofá de três lugares que ganhara do filho e uma mesinha para o rádio. A casa era simples como a vida naquele momento, sem luxo e sem graça.

Seu Mario, nesta altura da vida apenas suportava o passar do tempo. Mas não reclamava de nada, a não ser do barulho do sino, que segundo ele, tocava num intervalo menor que o das outras igrejas:

_ Nunca vi em Igreja nenhuma o sino tocar a cada dez minutos... resmungava ele.

E ia qualquer um tentar ponderar com ele que o sino não tocava assim, pra ver se não começava a Terceira Guerra.

O Anel do ReiOnde histórias criam vida. Descubra agora