Naquele mesmo dia, morreu Fredernando de Cida. Um pernambucano que era lavrador na cidade. Diziam todos que a família passava fome de verdade. Como não chovia, não vingava a pequena roça que tinham, e pedir não pedia. Era homem muito orgulhoso e de poucos amigos.
A mulher, Cida, tinha medo de desrespeitar o marido e pedir ajuda. Medo, porque o homem era também violento. Não poucas vezes quando cansava de tanto sofrer, e via seus quatro filhos também definhando, reclamava, e acabava levando uma surra.
Fredernando não tinha dinheiro para comida, mas arranjava para a cachaça, e isso desgraçava ainda mais as coisas.
Seu Mario não era amigo, mas conhecia o casal do tempo em que sua esposa ainda era viva e vez em quando ia ter na casa dos dois para levar alguma coisa que os ajudasse, escondido de Fredernando.
Por isso, talvez, é que foram chamar Seu Mario ao velório.
Estava cansado por ter ido dormir tarde na noite anterior, mas achou que seria desfeita com a viúva e que desagradaria a própria esposa se estivesse viva. Então depois de enamorar-se do anel, que encontrou depois de quase uma hora fuçando as sacas, e tomar um banho, foi-se a caminho da casa do morto, com Maria.
Era costume velar os mortos na própria casa e depois sair em cortejo até o cemitério.
Quando Seu Mario chegou à casa já tinha anoitecido. Na entrada as crianças brincavam como se nada houvesse acontecido. Uma ou outra estavam encostadas à parede sem nenhuma expressão. Seu Mario que ainda guardava muita sensibilidade quis chorar, mas conteve-se.
Estranho não haver ladainha. Talvez ainda respeitassem a natureza mal humorada de Fredernando.
Entrou na casa, saudou a todos discretamente e foi até a sala onde estava o caixão. Olhou bem para o defunto. Olhos cercados por olheiras e marcas de expressão. Corpo raquítico de quem não se alimentava bem há muito. E tinha um odor de suor impregnado que apesar do banho demorado que lhe deram insistia em partir com o dono. "Era homem trabalhador", ele pensou.
Neste momento entrou a viúva, que havia se retirado para a cozinha e voltava. Não tinha semblante de mulher que havia acabado de perder o marido. Estava muito serena, e dava a impressão de estar sem jeito apenas. Não tinha nada para servir, como o costume mandava. Vinha de um em um e oferecia um café ralo e morno que tinha feito há alguns minutos. Seu Mario a cumprimentou. "Que Deus o tenha". "Amém, brigado seu Mario".
A mulher agradeceu a presença dele e lembrou das tantas vezes em que Dona Carminha os ajudou trazendo o que comer às escondidas e umas roupinhas que conseguia para as crianças. "Uma benção tua mulher, Seu Mario."
Enquanto ouvia Cida rasgar elogios à sua finada esposa, tomou o café sentado na banqueta que o morto mesmo fizera anos atrás.
Na parede havia um retrato velho. Fredernando e Cida pousavam lado a lado. Ela jovem, bonita, com os cabelos arrumados, e ele também. Seu Mário parou um minuto na frente do retrato como quem investiga uma pintura famosa.
A viúva notou e se aproximou dele:
_ Sabe o que ele me dizia a essa época, Seu Mario? Dizia que eu era a sua rainha. Terminou me xingando de mula, pode? E riu discretamente.
Seu Mario também sorriu.
Não se demorou muito ali.
Foi o ultimo a chegar e o primeiro a sair. A viúva agradeceu e lembrou novamente das ajudas de sua finada esposa e o quanto falava bem dele para ela.
Seu Mario outra vez olhou o retrato e saiu.
No caminho de volta para casa, lembrou de agradecer a Maria por haver sido cúmplice na história da farinha. A burra não havia entendido nada aquela história e sorriu apenas. Mas o que não tirava da cabeça eram as palavras de Cida: "Dizia que eu era sua rainha".
Esforçou-se por lembrar o rosto da viúva, que de fato no retrato guardava em si muita beleza. Comparando o rosto de agora àquele não havia quem dissesse tratar da mesma pessoa. Era claro que na face atual havia estampado os algures do tempo e suas marcas. E Seu Mario em seus traços ainda via um resto de majestade do passado.
"Poderia ela aparecer nos próximos sonhos ao invés de Dona Chica, isso sim."
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O Anel do Rei
Fiction généraleO Romance narra a história de Seu Mario, um velhinho do interior da Bahia e sua saga depois que encontra um anel supostamente valioso e toda aventura para protegê-lo de todos e seus devaneios que farão você ir do riso às lágrimas! Por favor comente...