III- Um conto de bruxas

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"O mundo estava em chamas e ninguém podia me salvar, a não ser você. É estranho o que o desejo faz as pessoas tolas fazerem... Eu nunca sonhei que conheceria alguém como você... Eu nunca sonhei que perderia alguém como você..."

Essa música não saía da minha cabeça.
Enquanto cantarolava para que não esquecesse da letra, os pingos de água gelada que caíam do chuveiro, pareciam evaporar instantaneamente ao contrastar com minha pele fervente.

Sentia um calor luxurioso que me possuía o espírito, tirava o juízo e o fôlego.

Precisava lavar a alma.

Ainda podia sentir a eletricidade do meu corpo ao tocá-lo.

Aquele homem, com seus olhos ambarinos intensos encarando-me, o cheiro doce e embriagante que exalava, a voz grave e aveludada que arrepiava meu corpo todo quando me tocava o ouvido, faziam-me desejá-lo como nunca a ninguém antes nos meus 32 anos de vida.

O cabelo propositalmente despenteado, a barba por fazer e a pele dourada, faziam-no parecer recém saído de um conto de fadas.

Nesse caso, de um conto de bruxas, porque a maneira com que seu olhar penetrante e seu sorriso largo me enfeitiçaram era sobrenatural.

No instante em que o vi, a música que agora não me abandonava os pensamentos, se tornou mais lenta. Quase parecia cantada acapela.

"Não eu não quero me apaixonar... esse amor vai quebrar seu coração..."

Deixara de ser ensurdecedora e a batida eletrônica dava lugar a uma melodia sexy e suave acompanhada de uma voz masculina e marcante.

Foi nessa hora que todas as duas mil pessoas que estavam na boate desapareceram.

Éramos apenas nós dois, num momento que parecia ser eterno.
Pelo menos sua lembrança seria.

Ele já há alguns minutos me observava e quando seus olhos pousaram sobre os meus, ele sorriu, enquanto eu sentia-me derreter.

Lentamente e sem tirar seus olhos dos meus olhos, ele se aproximou. De forma educada e gentil  abraçou-me e já bem próximo do meu rosto se apresentou...

Foi quando, dissolvendo-me em suor e ansiedade e com o coração quase explodindo em êxtase que  despertei.

- Sequer consegui ouvir seu nome. - Pensei. -

Ao abrir os olhos e perceber que as paredes escuras da boate haviam dado lugar às do meu quarto, que a música eletrônica que ainda me agitava os sentimentos havia silenciado, vi-me tomada de melancolia e decepção.

Nem multidão, nem dança ou DJ; nem...ELE.

Tudo desaparecera.

Só restavam ali as paredes do meu quarto, com o papel de parede desgastado, de aparência vintage, que mais parecia uma das blusas da tia Judith, irmã de meu pai, uma solteirona de meia idade que só sabia reclamar.

Ainda deitada na cama de cerejeira torneada, na qual dormira desde que deixara de usar o berço, reparei que tinha os dedos doloridos, quase com cãibras por tamanha força com que agarrava o edredom.

Atrás da descascada porta amarela, um velho pôster do Axl Rose, com seu lenço vermelho estampado amarrado ao cabelo, pendurado ali desde os anos noventa, sorria, deixando-me com a sensação de estar parecendo mais estúpida que de costume.

Como poderia um sonho ter sido tão real, a ponto de confundir-me com sensações que nunca houvera experimentado?

Nada parecia fazer sentido.

Depois de umas cinco tentativas sem sucesso de voltar para o mesmo sonho, decidi que somente um banho frio poderia fazer-me despertar completamente do turbilhão de emoções que me impregnavam a mente e o corpo, misturando desejo, euforia e medo à frustração de estar sonhando.

E assim, com a água escorrendo, desenhando minhas curvas, eu tornava a repassar mentalmente o que acontecera, como se não quisesse que nenhum segundo do sonho se dissipasse.

Mesmo contrariando a lógica, minha alma sabia. Tinha sido real.

Ele era real.

Precisava ser...

As Crônicas de Ostara.  Livro 1- UM CONTO DE BRUXAS (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora