IX- Devaneios

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Trazida de volta à razão pelo som agudo e insistente do interfone, que chamava por intermináveis segundos, levantei cambaleante da poltrona em que estivera dormindo, deixando caída aos pés do criado-mudo o manuscrito que me roubara a paz.

Com pouco mais que dez passos, alcancei o aparelho amarelo suspenso ao lado da porta, que clamava aos berros por ser atendido.

Tinha os olhos ainda entreabertos, num acúmulo de inchaço e sonolência e com dificuldade de orientar-me, aproximei o fone do ouvido.

Com um desânimo explícito, balbuciei um modesto - Pois não?
- Eiiii, que voz de moribunda é esta? - Ressonava a voz fina e estridente de Anna do outro lado da linha.

- É quase isso. Semi-morta.

- Notei... Se não for pedir demais, Vossa Senhoria poderia ter educação suficiente para destrancar a porta e permitir que eu suba até seus aposentos?!

Disse Anna em tom sarcástico, típico dos dias em que estava empolgada em contar uma novidade.

Com seus dreads super longos, quase sempre presos acima da cabeça num volumoso coque e adornados pelos mais exóticos lenços que pudesse encontrar, Anna, uma negra linda de vinte e três anos, parecia esculpida pelo mais talentoso artesão.

Com um corpo bem feito, de quadris largos, cintura fina e estatura mediana, dava impressão de estar recém saída de um cartão postal da Bahia e quando procurava em seu arsenal de sorrisos, tinha um para cada ocasião.

Sempre brincara que sair à noite em sua companhia, era a razão por eu ainda estar solteira, já que com seu brilho e simpatia quase escandalosos era impossível competir.

Cursava o último semestre de Direito e sempre fora muito aplicada, o que lhe rendia boas notas, apesar das tantas noitadas de festa que incontáveis vezes fizeram com que chegasse atrasada às aulas matinais.

Nos conhecemos porque Anna frequentava a academia em que Lorenzo era personal trainer, e logo após terem um affair relâmpago que não durou uma semana, tornaram-se grandes amigos.

Apesar de ter quase dez anos à mais que ela, Anna e eu tivemos afinidade desde que fomos apresentadas e seu jeito espaçoso e despachado tão contrastante com o meu, prolixo e formal, acabara harmonizando e equilibrando - se na medida exata.

À partir de então, passara a frequentar seguidamente minha casa.

- É claro Anna, me desculpe. Respondi, enquanto pressionava a tecla que abria a porta de entrada do prédio.

Em pouco tempo, pude ouvir o elevador chegar, quando abri a porta.

Nem bem saíra do elevador, Anna já sem controle do volume de sua voz exclamava : - Amiga, você precisa saber o que me aconteceu ontem a noite quando eu...- Você esteve chorando?!

Disse Anna, interrompendo seu relato eufórico, ao perceber minha pesada e rubra fisionomia.

- Pois é... Se pode notar tanto assim? - Perguntei, ao mesmo tempo em que sinalizava que entrasse. -

- Você parece ter sido atropelada!

- Você sempre sutil... - disse, deixando escapar o esboço de um sorriso. -

- O que houve?

- Melhor entrar e sentar-se, porque a história não é curta.

Puxei uma cadeira da sala de jantar e posicionei em frente à poltrona em que estivera dormindo.

Olhei para o relógio que carregava no pulso direito, à fim de recuperar a noção do tempo,quando tive a surpresa de que já passavam das dezoito horas.

Fora como se tivesse passado a tarde em coma, porque me era vaga a lembrança de haver dormido.

Ao sentar-me na poltrona frente à Anna, reparei na folha de papel que jazia sobre o envelope e não pude evitar examiná-los novamente, para certificar-me de que tudo que acabara de viver fosse real.

Na sequência, relatei à Anna tudo o que sucedera passo-à-passo, sem deter-me em detalhes do conteúdo da carta, pela insegurança sobre o efeito que uma nova leitura teria em minha psique.

Poderia ser ainda mais devastador.

Repeti com detalhes fotográficos o sonho do qual há pouco tempo despertara e precisei de um controle sobre-humano para que não me perdesse em devaneios em meio às lembranças ainda tão profundas que guardava daquele homem.

Sentia como se ele corresse nas minhas veias.

Fora quase um monólogo.

Findado o largo discurso, que calculando superficialmente deve ter durado uma hora, com intervalo de apenas uns poucos segundos, em que levantei para acender as luzes do apartamento já que a luz natural tornara-se cada vez mais parca, Anna enfim, retomou a palavra :

- E o que pensa em fazer à respeito?
Alice isto é muito sério... Acredito que deva procurar o velho feiticeiro, porque neste momento talvez somente ele possa te ajudar a encontrar as respostas para tudo isso.

- Também penso assim, mas preciso de um tempo para pensar em que atitude tomar.

- Se quiser posso ir até lá com você, a casa fica logo alí na rua de baixo. Vou te deixar à vontade para refletir e poder decidir o melhor à fazer. Saiba que pode contar comigo para o que for.

- Obrigada, eu sei que posso.

Acompanhei-a até a porta do elevador, nos despedimos e ela se foi.

Ao virar-me para entrar em casa, percebi um movimento sorrateiro no primeiro degrau da escada.

Um calafrio percorreu meu corpo inteiro numa fração de segundos.

Lentamente voltei o olhar para o lado e tive um baque ao ver que ali estava, como que à espreita da caça, o maldito gato preto que vira mais cedo, ao chegar.

Apressei - me em entrar e fechar a porta, enquanto maldizia em voz alta o furtivo felino.

Com as costas coladas à porta e com vaga impressão de estar em segurança, me permiti fechar os olhos por um instante, enquanto contabilizava os danos irreparáveis que sofrera minha pacata vida de docente solteirona em tão pouco tempo.

Se pudesse voltar no tempo e fazer com que nada disso tivesse acontecido, não hesitaria.

Isso era o que minha razão manifestava.

Já meu coração insano, implorava por mais uma noite com Igor.

Mesmo que somente nos meus sonhos...

As Crônicas de Ostara.  Livro 1- UM CONTO DE BRUXAS (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora