XIV- Ecos

231 28 16
                                    

As palavras proferidas por meu pai, ressonavam distantes, parecendo ecos de um chamado à uma realidade distópica.

Em meio à tanta informação, sentia como se me perdesse aos poucos e continuamente, tendo desfeita minha identidade que de maneira absurda se reconstruía descabidamente diferente.

Eu que sempre pensara ter sido melhor amiga de minha mãe, agora me via sufocada entre questionamentos que semeavam dúvidas com maior velocidade do que buscavam respostas e meus pensamentos empilhavam-se à esmo numa reação em cadeia que insistia em convencer-me do contrário de todas as minhas verdades até então.

Minha mãe uma cigana, casada com outro homem, em outro país.
Como isso era possível? Eu sequer imaginara que ela houvesse morado em outro estado, que dirá na Espanha, em um acampamento cigano, lendo mãos pelas ruas de Sevilha!

Só poderia ser uma brincadeira de mal gosto do meu pai.

Ela sempre tivera um comportamento um tanto exotérico, gostava de incensos e era supersticiosa, mas daí à escrever um diário mágico e viver de quiromancia existe alguma distancia...

- Você consegue tudo o que desejar com o fígado. - Dizia ela brincando comigo, entre risos. - Eu desejava apenas retomar minha vida do ponto onde parei, mas parecia impossível.

De súbito, enquanto viajava por entre os escombros de minha própria história e as palavras de meu pai, fantasiando cada frase numa tentativa de refazer seus passos, fui arrebatada de volta ao mundo concreto pela terrível e nefasta imagem que se materializava à minha frente, fazendo-me paralisar de pânico.

O velho feiticeiro como se saído de um livro de Stephen King me encarava com um sorriso lúgubre e um olhar demoníaco que me abafara à voz. Imóvel em pé, às costas de meu pai, fitando-me a alma como se fosse capaz de ler meus pensamentos, sem que movesse os lábios, pude ouvir sua voz rouca, calejada pelo excesso de fumo, sussurrar-me ao pé do ouvido:

- Sou Salazar... Venha à mim e encontrará o que precisa saber...

Instantaneamente senti a salivação abundante e a visão escurecer enquanto um suor frio brotava em minha pele quase cianótica...

- O que houve Alice? Meu Deus você está tão pálida, está se sentindo mal? - Disse meu pai, interrompendo sua narrativa e segurando-me num ato reflexo, evitando assim que eu despencasse do sofá. -

- Não foi nada demais, fiquei apenas um pouco mareada, mas já me sinto melhor... Devo estar com a pressão baixa. - Respondi, ocultando dentro do possível a expressão de espanto que me estampava o rosto causada pela funesta aparição que ao correr os olhos pela sala, notei haver desaparecido. -

- Deve ser fome, vamos até a cozinha e seguimos de onde parei enquanto preparo o almoço, se é que você quer continuar ouvindo...

- É obvio que quero ouvir! Faço questão.

Recompus-me após um copo de água gelada assim que chegamos à cozinha. Ainda incrédula e impressionada pelo ocorrido, sentei-me à mesa oval de madeira rústica que tomava conta do centro do cômodo, tirei o celular do bolso da calça jeans que usava e percebi que havia uma chamada perdida de Lorenzo, que eu não ouvira por ter deixado o aparelho no modo silencioso como de costume nos domingos em que estava na companhia de meu pai, evitando interrupções em nossos extensos diálogos. - Mais tarde retorno. - Pensei, alterando para o modo "vibrar" o telefone. -

Os sussurros emanados pela medonha aparição do velho feiticeiro ainda ecoavam em minha mente, e numa fração de segundos associei seu timbre áspero e grave à voz que outrora anunciara a morte de minha mãe por dias à fio.

Lutando contra a tempestade de pensamentos desordenados que se despejavam um após o outro, enfim consegui calar a consciência e estar presente à cozinha outra vez.

Antes de iniciar seus trabalhos culinários, meu pai que era quase um especialista na gastronomia, de forma quase ritualística acendera um cigarro e recostara-se à janela, observando-me a fisionomia ansiosa pela continuidade de seu relato, porém conformada, por saber que ele fumava sempre abstendo-se de qualquer forma de comunicação.

- Sua mãe era uma mulher inigualável. - Disse, ao mesmo tempo em que apagava o cigarro sob um fio de água que saía da torneira. - E isso eu descobri naquela mesma noite em Sevilha. - Complementou, deixando transparecer a nostalgia em sua fala. -

Enquanto preparava um delicioso Strogonoff, que faria até o mais disciplinado vegetariano repensar suas escolhas, permitia-se reviver seu passado há tanto tempo afônico, enquanto descrevia com riqueza de detalhes tamanha os cenários que quase podia tateá-los ao fechar meus olhos.

Após mais algum tempo de conversa, pude notar que quanto mais meu pai se aprofundava na história que me contava, mais debilitada e envelhecida sua expressão se tornava. Aquilo certamente não estava lhe fazendo bem. Almoçamos em silêncio enquanto eu remexia a comida no prato, dissimulando ao máximo a falta de fome.

- Podemos falar sobre essas coisas em outra ocasião? - Perguntou cabisbaixo. -

- Claro que sim... Vamos aproveitar o resto da tarde para assistir televisão e falar sobre coisas boas. Os últimos dias já tem sido tensos o suficiente.

- Que bom que você compreende, mas mesmo assim, me desculpe por ser tão fraco...

- Imagine... Você não é fraco, é sensível, e isso o faz ainda mais admirável. - Respondi enquanto contemplava um terno sorriso formar-se em seus lábios. -

- Você é tão boa filha. Sinto muito por termos ocultado tantas coisas, mas tivemos nossas razões. Procure sim o velho Salazar, ele poderá esclarecer as coisas além do que eu consigo fazer.

- Farei isso... E por favor, não se culpe por nada. As coisas são como devem ser. - Disse, enquanto minha pele novamente estremecia só por cogitar estar na presença do feiticeiro. -

Nem concluíra a frase quando reparei que meu celular estava à vibrar. Lorenzo mais uma vez me ligava.

- Alô?!

- Que dificuldade falar com você... - Disse Lorenzo no usual tom sarcástico. -

- O que você quer?

- Uhuu... Alice sempre delicada, um poço de amabilidade... Hoje à noite nós vamos ao Shamrock Irish Pub e liguei para comunicar que você também vai...

- Nós quem, além de eu e você?

- Anna, Isadora, Marina...

- E...? Quem mais vai Lorenzo?? Conheço você...

- Tá bem! O Diego vai! Você não deixa passar nada!

- Você bancando o cupido denovo não é possível!

- Juro que não! A idéia do Pub hoje foi dele e pediu que eu chamasse você... Ah, Qual é Alice?! Vocês vivem de beijinhos por aí, não entendo porque você não assume logo seu caso com ele, sabe que o cara é louco por você!

- Isso é assunto meu.

- Te pego às 20:00, esteja pronta.

- Não precisa, vou de carro.

- Veja só... vai tirar aquela velharia da garagem é?! Com sorte você chega até o bar... - Falou enquanto gargalhava tirando sarro do meu Mustang 87. -

- Engraçadinho. É um clássico e está pago. Prefiro meu carrinho velho do que viver afogada nas prestações do seu C4. - Respondi não podendo evitar o riso também.-

- Combinado então... e boa sorte em fazer pegar seu "clássico". Beijos!

- Beijos.

As Crônicas de Ostara.  Livro 1- UM CONTO DE BRUXAS (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora