O sol já se deitava tímido no horizonte e os últimos raios resplandeciam no campo.
Após realizadas as tarefas diárias, os homens já confraternizavam empunhando suas taças de vinho tinto, entre risadas, conversas e rodadas de truco, aguardavam a comida que começava à ser preparada pelas mulheres do grupo.
O cheiro da cebola fritando na manteiga em grandes panelas de ferro fundido, já tomava conta do ar, impregnando os cabelos das moças desavisadas que não estivessem usando um lenço para cobri-los.
Ao longe se via uma esvoaçante saia azul turquesa arrastando a relva, fazendo deitar o pasto alto, deixava um rastro por onde andava à largos passos.
Os longos e volumosos cabelos escuros de Samara brilhavam ao balanço de sua fina cintura, ainda que desfavorecidos pela parca iluminação crepuscular.
- Bába Iolanda?! - Chamou Samara, aguardando ansiosa pela resposta vinda do interior da suntuosa tenda... -
- Sim? - Devolveu a voz anciã ao delicado chamado. -
- Sou eu Bába, Samara filha de Soraia... Gostaria de conversar com a senhora, posso voltar em hora mais apropriada se preferir.
- Entre filha, estou apenas descansando as pernas.
A grande e opulenta tenda, ricamente adornada com tapetes persas e almofadões vermelhos de fina seda, cheirava a mirra recém queimada, e sobre a torneada cama de marfim, trazida da Índia por outros Rhom que viviam no oriente sob encomenda, repousava Bába Iolanda.
Tinha nas mãos uma escova com cabo de ouro e pêlos de javali que pertencera à sua avó, com a qual, pensativa escovava os fios compridos e grisalhos que pendiam de sua cabeça tal qual uma reluzente chuva prateada. Pisando em ovos ao passo que arredava lentamente o voil que cobria a entrada do aposento, com cerimônia e respeito, Samara entrou.
- À que devo a visita filha? - Perguntou Iolanda sentando-se na cama -
- Desculpe o horário e a ousadia, porém há dias venho estando angustiada por algumas dúvidas, e consumida pela curiosidade, hoje não resisti em vir saná-las.
- Pois então estou à disposição, pergunte o que tanto deseja saber...
- Bába, não tome por ofensa, mas eu gostaria muito de saber sobre a história da cigana Lolla, antiga esposa do pai de Igor.
- Como eu já previra! Estava à espera do dia que você tomaria coragem para perguntar-me. Fez muito bem em vir até aqui filha.
Lembrar dessa história que tanto sofrimento trouxe ao meu filho, bem como vergonha à minha família, não é tarefa fácil, no entanto, é necessária para que eu possa proteger Igor e afastar definitivamente aquela gadji impura de seu destino... -Falou, enquanto arremedava um meio-sorriso perverso. -
- Conte-me por favor o que realmente aconteceu, pois tudo o que sei são os boatos que escuto desde criança.
- Pois bem... Acomode-se que lhe contarei com detalhes.
Antes que pudesse terminar sua fala, Samara já se encontrava sentada aos pés da cama, escorada em meia dúzia de almofadas e com seus penetrantes e luminosos olhos negros como ônix recém lapidado aguardava astuta, à sentença.
- "Lolla era uma moça bonita... Fora iniciada na alta magia no solstício de inverno quando entre os Rhom passou a chamar-se Ostara, em homenagem à Deusa, simbolizando o equinócio, período de união entre o Deus Sol e à Deusa Lua quando todas as forças da natureza estão em harmonia.
Sua sorte era invejável, recebera dons raros e com o passar do tempo, tornou-se uma feiticeira de admiráveis poderes premonitórios. Dominava com maestria as artes do Tarot e jamais soube de algo que alegasse iminente à acontecer que não se concretizasse.
A beleza exótica da qual era feita, permitia que facilmente com alguns poucos sorrisos, convencesse à qualquer um fazer as suas vontades. Era perspicaz e articuladora, mas nunca me enganou. Sempre soube que traria sofrimento ao meu filho János, que cego de paixão pela trigueira morena, ignorava todos os meus conselhos sobre não casar-se com ela, que jamais o amaria.
Moço forte e bonito, lembrava por demais à aparência de Igor exceto pelo tom de ouro que lhe coloria os cabelos sob efeito dos raios de sol, era disputado por inúmeras belas moças de outras Kumpanias, mas o amor é a mais traiçoeira armadilha e acaba por enredar-nos nas teias do descabido.
Apaixonou-se perdidamente por Lolla, assim que à vira dançando, em uma festa de casamento no leste da Romênia. Enquanto não a carregou até aqui não sossegou, mesmo sabendo que era contra à vontade dela que se casariam, sem dar ouvidos aos sinais de que seria infeliz.
Passaram-se muitos anos e tive à impressão de que Lolla tomava gosto por seu casamento com János. Tinha uma vida de riquezas e ganhava dele todo ouro pelo qual ele pudesse pagar. Cumpria com suas obrigações de ler mãos pelas praças não por dinheiro, mas por respeito às nossas tradições o que jamais me fez pensar que algum dia viesse à trair seu povo e quebrar o coração de seu marido...
Saiu certo dia sozinha rumo ao centro da cidade, coisa que entre as ciganas não temos habito em fazer, porém, já havia conquistado a confiança de János, que acabara erroneamente por permitir certas liberdades à sua mulher.
As horas se passaram, a noite caiu e nem sinal do retorno de Lolla ao acampamento. Desesperado, János reuniu todos os homens do bando a fim de buscarem por ela nos arredores da cidade. Madrugada à dentro esmiuçaram ruas sem sucesso e já contendo o pranto, meu filho preocupado, decidira voltar ao campo, na esperança de que ela houvesse aparecido. Atravessavam a Plaza de España já ao amanhecer, perfazendo o caminho de volta, quando lhe ocorreu perguntar ao vendedor de flores que todos os dias pontualmente ali estava, se por acaso teria visto a cigana no dia anterior.
A resposta atravessou-lhe com força o peito, tal qual a adaga atirada à distancia, quando soube pelo florista, que a esposa que tanto amava tinha sido vista indo embora da praça com um gadjo."
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As Crônicas de Ostara. Livro 1- UM CONTO DE BRUXAS (Em Revisão)
RomanceLivro 1 - O passado é mentira, o presente é caos e o futuro não está escrito nas linhas das mãos. Registrado na Biblioteca Nacional. Plágio é crime! Seja criativo, não copie!