Inglaterra, 1854
-Aqui mãe... - minhas costas estavam doloridas pelo esforço de subir dois lances de escadas, o que meu pai reclamava ser desnecessário, mas que minha mãe implorou para ser construída em nossa casa já desgastada. Os baldes de água quente pareciam pesar toneladas. Mamãe sempre manda preparar o banho de Alice em momentos mais inoportunos.
- Você demorou demais! - reclama ela. - Alice tem um encontro com o Marquez de Ashcurt há exatamente meia hora!
As bochechas dela estavam coradas, o que não ajudava muito com o vestido cor abóbora. Alice estava se despindo tranquilamente sem nenhum pudor. Desvio o olhar rapidamente, mas não antes de reparar como seu corpo era diferente do meu. Respiro fundo em lamento.
- O Marquez de Ashcurt não é um senhor senil?
Despejava os últimos baldes de água na banheira, coloco alguns aromas preferidos de Alice enquanto mamãe resmungava.
- E o que importa! Se Alice for esperta, o que eu não duvido, irá seduzi-lo rapidamente...
Mamãe sempre nos ensinou a seduzir os homens desde a morte de meu pai. Ela decidiu que assim seria mais fácil de arranjar dinheiro, já que percebeu que nossa situação financeira já não estava à mesma... E isso foi há três anos...
- Ande Helena! Estou cansada de ver você em minha frente! - diz mal humorada. Ela sorri radiante quando se vira para Alice. - Agora você, minha querida, precisa descansar e se embelezar para o nosso Marquez!
Alice ri animadamente.
- Esse é muito fácil mamãe! É só eu ir com aquele vestido azul que me deu semana passada. Aquele com um decote profundo!
- Oh, minha menina! Você está coberta de razão! Helena, pare de ficar nos observando e separe o vestido!
Saio do pequeno banheiro ao som de risos delas. Enquanto caminhava desanimadamente em direção ao guarda roupa de Alice, noto como nossa casa já não é a mesma de antes. Sem uma equipe eficiente na limpeza, a casa está perdendo sua beleza aos poucos.
Abro o guarda roupa e o cheiro do perfume forte e adocicado de Alice me atinge com força total, me deixando desnorteado momentaneamente. Pego o vestido azul e o estendo em sua cama arrumada com os melhores lençóis da casa. Sua colcha possuía detalhes em vermelho sangue, enquanto a cortina do dossel possuía a mesma cor.
Quando me dirijo para o corredor, noto meu reflexo no grande espelho do quarto. Minhas roupas desgastadas e foras de moda a milênios. O pequeno avental branco, que já estava um pouco encardido pelo pó, se sobressaía em minha vestimenta. Só faltava uma pequena touca branca rendada em cima de minha cabeça para ficar perfeito. Uma vestimenta perfeita para a empregada da casa.
Deixei de notar como meus olhos castanhos claros eram sem graça em comparação ao azul claro de Alice. Parei de comparar o quanto meu cabelo escuro e liso era normal ao cabelo ondulado e castanho claro dela... Parei de importar dos olhares que Alice recebe de todos os homens que passamos, sendo eles casados ou não, enquanto ficava camuflada por minhas roupas sem graça. Toco meus cabelos enrolados em um coque baixo, porém muito firme com uns dez grampos de cabelo. Ajeito meu vestido puído e respiro fundo.
Simplesmente jurei a mim mesma que ajudariam elas, tanto minha mãe como minha irmã... Elas, querendo ou não, são minha única família. Sinto falta de meu pai... Sinto falta dos momentos em que éramos só nós dois. Ele me ensinando a preparar um determinado curativo, me indicando ótimos livros para passar o tempo... Enfim. Eu o estimava muito. E ainda sinto sua presença. Às vezes sinto que ele está me confortando nos momentos mais difíceis, como se estivesse me dizendo: "calma... Espere. Não as abandone agora." E eu o escuto.
Caminho lentamente pela casa. Observo como a escada estava um pouco empoeirada... Não conseguia retirar todo o pó que estava impregnado na madeira de toda a casa em apenas um dia. Levaria dias, se duvidasse, meses...
Encontro um de nossos únicos funcionários, Beth, a cozinheira. Resta ainda nosso mordomo Edgar e o jardineiro Thomas. Recebem uma miséria de minha mãe, dou escondido dela o pouco que recebo ajudando algumas famílias da vila com minha parca instrução médica que recebi de meu pai, mas mesmo assim ajuda. Sei receitas feitas de várias ervas. Sei o que cura uma gripe ou uma lesão. Dores de cabeça á enxaquecas. Dores musculares á ossos quebrados...
Mas é claro... Faço isso as escondidas. Nossa sociedade não entende que as mulheres também servem para trabalhar em algum cargo melhor que cozinheira, lavadeira ou até mesmo as rameiras...
- Olá Beth... Como está seu tornozelo hoje? A dor já passou?
Beth, na semana passada, torceu levemente seu tornozelo. Ela não queria parar de trabalhar. O motivo? Helena Grainville. Ela não queria que mais uma tarefa doméstica tivesse que ser realizada por mim. Disse que não importava de preparar o almoço durante um tempo. Ela começou a chorar e eu não sabia o motivo. Ela só parou quando disse que aceitava ela continuar mesmo debilitada e seguir minhas recomendações, aplicando uma pasta contendo algumas ervas e deixasse o pé em questão para cima.
- Está muito melhor, senhorita. Graças a sua pasta mal cheirosa.
Beth já estava com cinqüenta e quatro anos, e estava casada com nosso jardineiro. Thomas era seu filho. Era muito simpática e atenciosa. Seu rostinho gordinho era marcado pela doçura e continha uma expressão amorosa, o que não encontrava em minha mãe. Muitas vezes Beth fez o papel de mãe para mim. O que eu não lamento.
- Ela não é mal cheirosa... - digo pegando uma maçã da mesa. - Só apresenta um odor não conhecido...
Sem o conhecimento de mamãe, pedi para Edgar plantar algumas frutas, legumes e verduras para nosso uso. Além de um pequeno jardim com minhas ervas medicinais
Ela coloca a mão na cintura enquanto mexia o caldo para o jantar no fogão.
- A senhorita não sabe mentir.
Sorrio. - Não mesmo...
Ela ri. - Ah!
Ela corre para a mesa e enxuga suas mãos no avental envelhecido. Retira um bilhete debaixo da fruteira que não tinha notado antes.
- Aqui. - ela me entrega. Retiro a maçã da boca, já pela metade, e a descanso em meu colo.
- Quem me chama? - sorrio ao ler o pedido para uma visita especial. Era assim que meus serviços eram requisitados.
- A família dos Berrighan... Parece que o filho deles está doente. Todos os médicos que a família chamaram não conseguiram descobrir de qual doença se tratava.
- Vou lá agora. Pede para Edgar selar minha égua?
Bela já estava um pouco velha, era o único eqüino que restou. Mamãe quase a vendeu para fazer um cozido, mas por minha grande insistência ela deixou Bela ficar. Recebi alguns xingamentos também, mas simplesmente tranquei meus ouvidos.
- Sim , senhorita.
Ando para meu quarto o mais rápido que posso, evitando as portas do quarto de mamãe e Alice. Mas dou de cara com elas no corredor de cima.
- Aonde vai com toda pressa?
- Ao meu quarto... - o que não era mentira.
Mamãe me olha com seu olhar investigador. Mantenho seu olhar. Ela desiste.
- Estou saindo para um chá com minha amiga. Alice vai se encontrar com o Marquez. Não nos espere para o jantar.
Aceno com a cabeça. - Tudo bem...
Alice sorri. - Quando irá arranjar alguém, Helena?
Pisco algumas vezes. - Como disse?
- Quando irá arranjar alguém cego o suficiente para casar com você?
Coro com a humilhação. Elas não escondem as risadas. Engulo as lágrimas e corro em direção ao meu quarto. Tento não pensar nas falas das duas enquanto tiro minha roupa do meu guarda roupa. Pego minha capa amarela que estava pendurada em uma das portas. Visto rapidamente minha roupa de montaria, o último presente de papai e parto em direção aos fundos.

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Cartas não Respondidas
Romansa2° LIVRO DA SÉRIE 'AMOR E GUERRA' PLÁGIO É CRIME! Helena Grainville era uma mulher diferente. Antes do pai falecer e da mãe gastar toda a herança com sua irmã, ela aprendeu a arte da medicina. Por ser proibido o ensino para mulheres, ela aprendeu co...