O dia amanheceu rápido e a noite foi um mar sem sonhos, uma névoa modorrenta que bailava sem imagens e sons. Uma escuridão calma e tranquila - assim como eu imaginava - sem ninguém para me atormentar ou chamar a atenção. Era assim a maioria dos meus sonhos. Era assim a minha visão de paraíso.
Quando eu acordei, a luz do sol que banhava meu quarto cegou meus olhos. Minha mãe acabara de afastar as cortinas das janelas, dizendo palavras distantes que não pude compreendê-las. Minha cabeça estava oca e ecoante, era como se as palavras dela se tornassem códigos de alguma língua alienígena.
- Hã? O que é? - eu perguntei desorientado.
- Uon, ounnounoun erin uonuon.
- Quê?!
Ela saiu pela porta pacificamente, seu corpo era para mim se não um borrão cor-de-rosa, devido ao seu roupão de banho. Deitei com meu rosto entre os lençóis imaginando porque minha cabeça eclodia num gigantesca dor. Lembrei-me repentinamente do BUT e do alto daquele morro, lembrei-me de Lisa e seu sorriso sarcástico e bêbado... e lembrei-me de Kian.
Necessariamente, eu devia entrar em pânico.
Kian havia pegado a carta de enigma de Megan. E eu sei que não devia ser nada de mais, parecia uma carta de amor qualquer, com um velho jogo de perdidos e achados completamente comum e menosprezado que ninguém se importava. Mas significava para mim, oh sim, não um sentimento bobo e hostil, e sim algo aterrorizante. A visão de Megan era uma lembrança lucida em relação a minha vida antiga e a meu pai. Era sempre meu pai. Agora Kian tinha aquilo nas mãos, e sabia tudo, ou pelo menos o que pudesse tirar de provação. Maldito jogo de caça.
Levantei-me correndo e tomei meus remédios diários, com um ou dois comprimidos a mais pela dor de cabeça. Tomei meu banho de segundos e coloquei a primeira peça de roupa que vi pela frente. Não me incomodei com minha cabeça àquela hora, estava um borrão castanho, simplesmente coloquei uma toca sobre eles e coloquei meus óculos. Nada que pudesse chamar muito a atenção. Sei que ninguém repara em mim quando ando pelas ruas, mas sinto como se todos permitissem apenas por um momento virarem as suas cabeças para ver o menino estranho. E eu me afogava nesses olhares. Pode ser que alguma menina me olhasse em aprovação, e quando meus olhos tocam-se com os delas a primeira coisa que me vem à cabeça é: "ela está rindo de mim".
A maioria das vezes eu tento me comportar como um menino normal. E na maioria das vezes eu fracasso.
Quando desço para tomar café da manhã neste domingo, encontro minha mãe lendo o jornal com uma xícara na mão. Ela estava tão concentrada que não ouviu meu sussurro de bom-dia. Às vezes, eu reparo, o quanto minha mãe tem trabalhado muito e que tinha suas preocupações que não fosse eu. Não podia julgá-la se não me ouvisse sussurrando às vezes. As pessoas têm problemas demais para ficarem reparando em nossos erros.
Assim que me sento à mesa e pego uma torrada, logo ela me nota.
- Ah, finalmente. - disse ela. - Te chamei por meia hora.
- Só estou cansado. - falei num tom casual. - Minha cabeça está explodindo, queria fazer parar.
Minha mãe me olhou por alguns segundos, que pareceu virar meses.
- Não vou perguntar o que fez ontem à noite. - disse ela voltando ao jornal. - Qualquer adolescente em sã consciência sabe dos seus valores e limites.
- Mãe. - eu a repreendi desconfortável.
Ela rio enquanto bebericava um gole de café, fazendo com que derramasse. Até eu não resisti à tentação de rir naquele momento, embora a derrame do café sobre a mesa fosse mais engraçado que minha mãe.
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Kian
RomanceTommy Jacobson sofre de depressão e transtorno de personalidade, depois que seu pai morreu. Traumatizado por esse motivo, ele se tornou alguém antissocial e instável, tendo dificuldades de manter a própria vida sem ajuda médica. Mas quando se muda...