Capítulo Dezessete/1

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E então acordei.

"Droga... é sempre a mesma coisa!". A luz do céu já impregnava meu lençol, minha cabeça girava num espiral eterno; via um teto alto se afastando do meu campo de visão. "Porque simplesmente não posso não acordar?" Levantei as tontas caçando com os pés meus chilenos que de alguma maneira sempre paravam debaixo da cama. "Se eu não acordasse todas as manhãs, me sentiria mais tranquilo". Levantei cambaleando em direção ao banheiro e lavei o rosto. Vesti meu uniforme escolar e penteei o cabelo com os dedos, escovei os dentes e desci.

Minha mãe estava à mesa com uma xícara na mão e lendo um jornal impresso. Aproximei-me devagar e fui traído por Pubi que veio ao meu encontro abanando aquele rabo pulguento. Minha mãe ergueu o olhar e abaixou o jornal.

– Onde foi ontem? – perguntou como uma mãe.

– Kian. – respondi estendendo a mão para pegar uma maçã. – Mãe. – comecei dando uma pequena mordida na fruta. – Você sabia sobre Megan.

O olhar de minha mãe dizia tudo. Ela afastou a xícara com a ponta dos dedos e se apoiou nos cotovelos à mesa olhando diretamente para mim. Vi minha mãe fazer aquela pose milhões de vezes, autoritária e soberba.

– Eu devia ter contado, eu sei. – ela deu um meio sorriso. – Mas sabe como Megan é. E além do mais, foi sua única amiga e é tão fofa.

Foi. – disse com firmeza. – Isso se refere ao passado, mãe. Nunca senti nada por ela e a senhora sabe. Eu não posso iniciar relacionamentos quando ainda sou fiscalizado pela minha mãe como um bebê.

A expressão no rosto dela foi de uma empatia absurda. Ela se levantou, afastou a cadeira e praticamente correu para me envolver no forte e prolongado abraço materno. A raiva que emanava do meu corpo foi-se dissipando como uma névoa passageira, como um cachorro raivoso na presença de seu dono. O bebê chorão no colo de sua mãe.

– Nunca em toda minha vida. – ela já entoou em lágrimas, estas que caíram em meu uniforme. – Pretendi transformar você em algo para tomar minha atenção. Criei-o para o mundo e tenho tanto medo Tommy, tanto medo desse mundo. Ambos sabemos que você passou por bocados e que esse mundo não se adapta a você... ou quase... quase isso.

Afastei-me dele e mordi a maça com força.

– E agradeço. – respondi. – Mãe... só, não me guarde mais segredo.

Os olhos dela tremeram.

– Eu...

– Minha querida. – alguém acabara de entrar na pela porta da frente.

O cirurgião Chris entrou carregando uma caixa de papéis e parou de súbito quando quem encontrou no caminho fora eu. Seus olhos correram pelo hall e caíram em minha mãe. Olhei encafifado para ambos e então compreendi. Parecia a coisa mais errada do mundo. Os dois ali se olhando enquanto tentavam encontrar palavras para dizer. Era óbvio que eu estava atrapalhando seja o que for que estivera acontecendo ali: "minha querida", era uma expressão bem estranha de se usar com uma colega de trabalho, alias, nem um pouco adequada. Segredos. Eu já estava tão habituados a eles que ver os de outras pessoas parecia irônico. O pomo de adão de Chris subiu e desceu e seus músculos no pescoço se contraíram, como o de um serial-killer quando abate a vítima, ou então era o que eu imaginei que fosse.

– Eu ia contar essa noite. – falou minha mãe.

– Você não está noivo? – perguntei apontando com o dedo da mão que segurava a maça, num gesto bem acusador.

KianOnde histórias criam vida. Descubra agora