Capítulo 23

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  A vida de Tatiana no hospital era positivamente alegre quandocomparada com o que ela encontrou ao voltar para casa em meados deagosto.Quando voltou, por fim, a andar mal de muletas, Tatiana encontrouDasha preparando o jantar para Alexander, e ele sentado à mesacomendo todo feliz, brincando com Mamãe, falando de política com Papai,fumando descontraído, não indo embora e não indo embora.E não indo embora. Morosa, Tatiana, sentada, mordiscava a suacomida como um rato estufado.Quando ele ia embora? Estava ficando tão tarde. Ele não tinhaescutas?– Dimitri, a que horas vocês têm escutas?– Às onze – Dimitri respondeu. – Mas Alexander tem folga hoje ànoite.– Tania, você ouviu? Mamãe e Papai agora dormem no quarto deDeda e Babushka – Dasha disse, sorrindo. – Eu e você agora temos umquarto só para nós. Dá para acreditar?Algo havia na voz de Dasha, que Tatiana não gostou.– Não – disse Tatiana. Quando Alexander ia embora?Dimitri voltou às barracas.Antes das onze, Mamãe e Papai estavam prontos para dormir. Mamãeinclinou-se a Dasha e sussurrou:– Ele não pode passar a noite, você ouviu? Seu pai sobe às paredes.Ele nos mata.– Eu ouço, Mamãe – Dasha sussurrou. – Ele vai embora logo, euprometo.Não tão logo, Tatiana pensou.Quando os seus pais foram para a cama, Dasha puxou Tatiana de ladoe sussurrou:– Tania, você pode ir para o telhado e brincar com o Anton? Porfavor? Eu só quero uma hora sozinha com Alexander, no quarto, Tania!Tatiana deixou Dasha sozinha com Alexander. Em seu quarto.Ela foi para a cozinha e vomitou na pia. O barulho nauseante na suacabeça continuou até mesmo depois que ela subiu ao telhado e sentousecom Anton, de plantão naquela noite. Anton não era um bomobservador dos céus. Ele dormia. Felizmente o céu estava tranquilo. Nemmesmo de longe vinham sons de guerra. Tatiana remexeu a areia nobalde e chorou sob a noite sem lua.Eu causei isso, ela pensou. A culpa é toda minha. Toda trêmula, elariu alto. Anton se contorceu. Eu fiz isso a mim mesma, e não tenho aquem mais culpar. Se ela não tivesse decidido trazer Pasha de volta,sozinha, se não tivesse se juntado aos voluntários e ido sabe lá Deus paraonde, soterrada numa explosão e a perna quebrada, ela e Dasha teriamido embora com Deda e Babushka para Molotov. E o impensável nãoestaria acontecendo em seu quarto agora.Ela ficou sentada até que Dasha apareceu mais tarde, fez-lhe um sinalpara descer e ir para a cama.Na noite seguinte, Mamãe disse a Tatiana que agora que ela estavaem casa o dia inteiro, com a perna quebrada e sem fazer nada, teria quecomeçar a preparar o jantar para a família.Até agora, na vida de Tatiana, Babushka Anna, que não trabalhava,tinha cozinhado. Nos finais de semana a mãe de Tatiana cozinhava. Àsvezes Dasha cozinhava. Nos feriados, como do Ano Novo, todo mundocozinhava.Todo mundo, exceto Tatiana, que arrumava tudo.– Eu gostaria muito, Mamãe – disse Tatiana. – Se eu soubesse como.Desdenhosa, Dasha disse:– Não tem nenhum segredo.– Sim, Tania – disse Alexander, sorrindo. – Nenhum segredo. Façaalguma coisa deliciosa. Uma torta de repolho, alguma coisa.Por que não? Tatiana pensou. Enquanto a sua perna sarava, elaprecisava ocupar suas mãos ociosas.Ela faria uma tentativa. Não podia continuar sentada no quarto, lendoo dia inteiro, mesmo que fosse um livro de frases em russo – inglês.Mesmo que estivesse relendo Guerra e Paz, de Tolstoi. Não podiacontinuar sentada em seu quarto pensando em Alexander.As muletas machucavam as suas costelas, por isso ela parou de usá-las. 

Mancando, ia ao armazém com a perna engessada. A primeira coisaque cozinharia em sua vida seria uma torta de repolho. Gostaria tambémde fazer uma torta de cogumelos, mas não os encontrou no armazém.Três tentativas fez Tatiana com a massa de levedura, cinco horas nototal. Ela fez um pouco de canja para acompanhar a torta.Alexander veio para jantar junto com Dimitri. Muita nervosa porqueAlexander ia experimentar a sua comida, Tatiana sugeriu que os doissoldados talvez quisessem voltar e jantar nas barracas.– O quê? E perder a sua primeira torta? – Alexander disseprovocativo.Dimitri sorriu.Eles comeram, beberam, falaram sobre o dia, sobre a guerra, e sobreevacuação, sobre as esperanças de achar o Pasha, e então Papai disse:– Tania, está um pouco salgado.– Não – mamãe disse –, ela não deixou que a massa crescesse osuficiente. E tem muitas cebolas. Por que você não tentou conseguiralguma coisa além do repolho?– Tania – Dasha disse –, na próxima vez, cozinhe as cenouras umpouco mais na sopa e coloque uma folha de louro. Você esqueceu a folhade louro.– Nada mal para uma primeira vez, Tania – Dimitri disse, sorridente.Alexander passou o seu prato à Tatiana e disse:– Está ótimo. Posso pedir, por favor, um pouco mais da torta? E aquiestá minha tigelinha para sopa.Depois do jantar, Dasha chamou novamente Tatiana de lado esussurrou, em sua voz suplicante:– Você e o Dimitri podem ficar no telhado um pouco? Hoje não vaidemorar muito. Ele tem que voltar. Por favor?Os garotos do prédio estavam sempre no telhado. Dimitri e Tatiananão estavam sozinhos.Mas Dasha e Alexander estavam sozinhos. O que Tatiana precisava eranão ver a irmã e a ele: ele, por toda uma vida; ela, por duas semanas. Emduas semanas, quando o verão terminaria, a paixonite de Dasha comcerteza também terminaria. Nada poderia sobreviver ao inverno deLeningrado.Mas como podia Tatiana não ver Alexander? Talvez ela pudessementir a todo mundo, mas não para si própria. Ela prendeu a respiração odia inteiro, até a primeira hora da noite, quando finalmente ela o viacaminhar pelo corredor. Nas duas últimas noites, ele parou na porta,sorriu:– Oi, Tania.– Oi, Alexander – ela respondeu, vermelha, os olhos nas botas dele.Ela não podia olhar para ele sem um tremor em alguma parte do corpo.Ela então serviu-lhe o jantar. Dasha então levou Tatiana de lado esussurrou.Tatiana estava pronta, dentes cerrados e tudo, para deixar Alexanderde lado. Ela sempre soubera que era a coisa certa a fazer e para issoestava preparada.Mas porque, noite após noite, jogavam-lhe na cara a coisa certa.Os dias corriam, e Tatiana percebia que era muito jovem paraesconder bem o que ia no seu coração, mas velha o suficiente para saberque o seu coração estava em seus olhos.Ela temia que a maneira como olhava Alexander chamasse a atençãode Dimitri, alguma coisa que o levaria a pensar: espere aí, por que ela estáolhando assim para ele? Ou pior, o que é aquilo nos olhos dela? Ou piorainda, porque ela desvia o olhar? Por que ela não pode olhar para elecomo todo mundo? Como eu olho para Dasha, ou como a Dasha olhapara mim?Ao olhar para Alexander, Tatiana condenava-se, mas não olhar,igualmente, a traía, talvez até mais.E Dimitri parecia haver captado tudo. Cada desviada de olhar, cadaolhar direto, os olhos atentos de Dimitri estavam sobre Alexander, sobreTatiana.Alexander era mais velho. Ele podia ocultar melhor.Em boa parte do tempo, ele a tratava como se não a conhecesse atéa noite de ontem, ou a de hoje, uma hora atrás, talvez na hora dasbruxas, talvez na hora da embriaguez, certamente na hora do cigarro.Mas, de alguma maneira, ele conseguia comportar-se em relação a elacomo se não existisse para ele. Como se ele não fosse nada para ela.Mas como?Como ele conseguiu esconder os seus passeios em Kirov, os doisabraçados, como conseguiu esconder a sua vida que ele a ela revelara,como escondeu as mãos imparáveis em seus seios, e seus lábios nela, etodas as coisas que dissera a ela? Como ele escondeu Luga de todoseles? Luga, quando ele largou seu corpo ensanguentado? Quando elaestava deitada, nua, e ele beijava o seu cabelo e lhe assegurava com osseus ternos braços, enquanto o coração dele batia loucamente em seupeito. Como ele escondeu seus próprios olhos? Quando estavam sozinhosAlexander olhava Tatiana como se não houvesse ninguém mais nomundo, só ela.Era aquilo mentira? Era isto mentira?Talvez fosse o que os adultos faziam. Eles beijavam seus seios edepois fingiam que isso nada significava, e se eles pudessem fingirrealmente bem, isso significava que eram realmente adultos.Ou talvez eles beijassem os seus seios e isso realmente não era nada.Como era possível isso? Tocar outro ser humano dessa maneira eachar que nada significa?Mas talvez se você podia fazer isso, significava que você era realmenteadulto.Tatiana não sabia, mas estava perplexa e humilhada por aquilo:imaginando-se nas mãos de Alexander quando ele mal se empenhava emchamá-la pelo nome.Tatiana abaixava a cabeça e desejava que todos desaparecessem. Masde vez em quando, quando Alexander estava sentado à mesa, e ela nasala, todos falando enquanto ela se mexia ou pegava os pratos, elapercebia o seu olhar, e numa centelha ela via os seus verdadeiros olhos.Tudo o que Tatiana recebia de Alexander eram gestos semsignificado.Ele abria a porta para ela, e, ao passar perto dele, eleesbarrava em seu corpo, e isso a nutria por um dia; ou quando ela faziachá para ele e passava-lhe a xícara, a ponta dos dedos dele –acidentalmente? – tocavam as pontas dos dedos dela, e isso dava-lheforça para outro dia. Até a próxima vez que ela o visse. Até a próxima vezque uma parte dele roçasse numa parte dela. Até a próxima vez que eledissesse: oi, Tania.Mas certa ocasião, quando Dimitri já entrara e Dasha estava em algumoutro lugar, Alexander, com um enorme sorriso no rosto disse: oi, Tania!cheguei! E ela riu, embora não quisesse. E quando ela olhou para ele,Alexander ria também silenciosamente.Certa noite, quando Alexander experimentou a blimchiki de queijo,ele disse:– Tania, é o melhor que você fez até hoje.E aquilo levantou seu ânimo, até que Dasha o beijou e disse:– Tanechka, você é para todos nós uma enviada de Deus.Tatiana não sorriu, então pegou o Dimitri observando-a, também semsorrir, então ela sorriu, mas sabia que não era suficiente. Mais tarde,quando Dasha e Alexander estavam sentados no sofá, Dimitri disse:– Dasha, devo dizer que nunca vi Alexander tão feliz com alguémcomo com você.E todo mundo sorriu, incluindo Alexander, que não olhou paraTatiana, que não sorria. Sim , e devemos agradecer por isso, ela pensoucom tristeza, captando os olhos de Dimitri.Ela continuava aprendendo a cozinhar novos pratos, como fazer tortasdoces, porque viu que Alexander as apreciava, comendo-as em umagarfada e depois tomando o seu chá e fumando os seus cigarros.– Sabe do que mais eu gosto? – ele disse uma vez.O coração de Tatiana parou por um momento.– Panquecas de batata.– Eu não sei como se faz isso.Onde estava todo mundo? Mamãe e Papai estavam no outro quarto,Dasha no banheiro, Dimitri não estava lá. Alexander sorriu junto ao rostode Tatiana, um sorriso contagiante só para ela.– Batatas, farinha de trigo, algumas cebolas, sal.– Isso é de...Dasha voltou.No dia seguinte, Tatiana fez panquecas de batata cobertas com nata,e a família inteira devorou tudo, dizendo que nunca tinham saboreadouma coisa tão deliciosa.– Onde você aprendeu a fazer isso? – perguntou Dasha.O único pequeno prazer que Tatiana tinha, durante os seus longosdias, era de servir Alexander. O prazer era mais intenso e menos afetadopelo desgosto, nas horas que antecediam a volta da família para casa,quando ela preparava comida, ansiando ver o seu rosto. 

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora