Capítulo 31

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Naquela noite, durante o bombardeio depois do jantar, o Hospital Suvorosky, onde estava Papai, foi atingido.Três bombas caíram sobre o hospital, que pegou fogo e queimou dentro da noite, apesar dos esforços dos bombeiros. O hospital não era construído com tijolos que resistiam ao fogo, mas de uma estrutura de madeira coberta com adobe, material do começo do século XVIII com o qual grande parte de Leningrado fora construída. O edifício inteiro desmoronou, depois explodiu em chamas. Aqueles poucos que podiam se mexer pularam das janelas gritando ao cair.Papai, aos quarenta e três anos, nascido no século anterior,consumido pelo remorso, incapaz de ficar sóbrio, nunca se levantou desua cama.Dasha, Tatiana, Marina e Mamãe correram a Suvorosky e observaram,impotentes e horrorizadas, como aquele inferno vencia os bombeiros, as mangueiras, o edifício, a noite.As meninas ajudaram a jogar inúteis baldes de água nas janelas do térreo. Pegaram areia dos telhados de edifícios próximos, mas tudo isso eram iniciativas sem sentido, pioradas pela inércia. Tatiana enrolou corpos carbonizados em lençóis molhados fornecidos pelo próprio Hospital Grechesky. Ela ficou ali até de manhã. Dasha e Marina voltaram para casa com Mamãe.Somente algumas pessoas conseguiram sair vivas. Os bombeiros nemmesmo acharam o corpo de Papai, nem se desculparam por isso,enquanto apagavam as últimas chamas. Eles não estavam tirando os corpos daquele hospital.- Olhe só o edifício, garotinha - disse um bombeiro. - Você acha que podemos tirar alguma coisa lá de dentro? Virou tudo brasa. Assim que esfriar, você poderá tocar a brasa e ver como ela se transforma em cinza negra.Meio distraído, ele a tocou no ombro.- É hora de ir. Seu pai, não é? Porra de alemães. O Camarada Stálintem razão. Não sei como, mas vamos trazê-los todos de volta para casa,para suas famílias.

Ao caminhar lentamente de volta para casa, de madrugada, Tatiana lembrou-se de como ficou enterrada na estação de Luga, sentindo comoa vida se esvaia das três pessoas por cima dela. Sua esperança era quePapai nunca acordara, nunca sofrera.Em casa, em silêncio, ela pegou os carnês de racionamento da família,menos o do Papai, e foi pegar o pão.Se a vida nos quartos comunitários fora antes difícil, isso agora, depois da morte de seu pai, se tornara quase impossível para Tatiana.Mamãe estava inconsolável e não falava com Tatiana.Dasha estava zangada e não falava com Tatiana.Tatiana não tinha certeza se Dasha estava brava por causa de Papai ou por causa de Alexander. Dasha nada dizia. Ela não falava com Tatiana.Marina visitava a sua mãe todos os dias em Vyborg e continuava pousando seus olhos solidários sobre Tatiana.Babushka Anna pintava. Ela pintou uma torta de maçã, que Tatiana disse que até dava vontade de comer.Dias depois da morte de Papai, Dasha pediu a Tatiana que fosse comela até as barracas para contar a Alexander o que havia acontecido.Tatiana arrastou Marina consigo, só para se sentir mais forte. Ela queria vê-lo, e ainda assim... Havia tão pouco a dizer. Ou havia muito a dizer ? Tatiana não tinha certeza, não podia saber sem a ajuda de Alexander e temia encará-lo. Alexander não estava nas barracas, tampouco Dimitri. Anatole Marazov veio à entrada e se apresentou.Tatiana o conhecia bem, por meio do que lhe contava Alexander.- O Dimitri não está sob o seu comando? - ela perguntou.- Não, ele está sob o comando do Sargento Kashnikov, que tem uma das unidades sob o meu comando, mas todos, por ordem superiores às minhas, foram enviados a Tikhvin.- Tikhvin? Do outro lado do rio? - disse Tatiana.- Sim, num barco no lago Ladoga. Não há homens suficientes emTikhvin.- Alexander também? - Tatiana perguntou ofegante.- Não, ele está em Karelia - Marazov respondeu olhando Tatiana de uma forma simpática. - Então você é a garota? - Marazov sorriu. - A garota pela qual ele deixou todas as outras?- Ela não - Dasha disse grosseiramente, aproximando-se de Tatiana. -Eu. Sou Dasha. Não lembra? Nos conhecemos no Sadko, no começo de junho passado.- Dasha - balbuciou Marazov.Tatiana empalideceu, apoiando-se com mais firmeza na parede. Marinaa olhava.Marazov virou-se para Tatiana.- E qual é o seu nome?- Tatiana - ela disse.Os olhos de Marazov se acenderam e depois perderam força. Dasha perguntou:

- Vocês se conhecem?- Não. Não nos conhecemos - ele disse.- Ah - disse Dasha. - Por um momento me pareceu que você reconhecia a minha irmã.Marazov continuou olhando para Tatiana.- Não, não mesmo - ele disse devagar, porém os seus olhos revelaram uma confusa familiaridade com ela. Ele deu de ombros. - Direi aAlexander que vocês vieram até aqui. Vou estar com ele em Karelia dentro de poucos dias.- Sim, por favor, diga a ele que nosso pai morreu - Dasha disse.Tatiana deu meia-volta e saiu da entrada, puxando Marina.A família quebrou-se como terra fendida. Mamãe não podia sair da cama. Babushka dela cuidava. Mamãe não queria nada com Tatiana,tampouco as suas desculpas e muito menos seus pedidos de perdão. Porfim, Tatiana parou de pedir.Tatiana sentia-se tomada por um forte vazio; pesava-lhe o sentimento de culpa, a âncora da responsabilidade. Não foi culpa minha, não foi culpa minha, ela repetia a si própria, pelas manhãs, enquanto cortava o pão,colocava-o no prato, e comia em silêncio. Trinta segundos era o tempo em que comia sua fatia, incluindo as migalhas, depois ela virava o prato eo sacudia sob a mesa. Tudo isso...Trinta segundos. E trinta segundos de não foi culpa minha, não foi culpa minha.Depois que Papai faleceu, sua ração diária de pão, meio quilo, foi suspensa. Mamãe finalmente colocou duzentos rublos na mão de Tatiana e disse a ela que fosse comprar mais comida. Ela voltou para casa, depois de gastar o dinheiro na compra de sete batatas, três cebolas, meio quilo de farinha e um quilo de pão branco, produto raro como a carne. Tatiana continuou indo pegar as rações e, às vezes, quando ela estava na fila,pensava um pouco envergonhada que se não tivessem comunicado às autoridades de imediato que Papai falecera, a família ainda teria como receber a ração dele até fins de setembro.Envergonhada, sim, mas nem por isso deixou de pensar nisso. Porque quando setembro virou outubro, e a crueza de sua dor diminuiu, embora o vazio permanecesse, Tatiana percebeu que o vazio não era tristeza, mas fome.

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora