Capítulo 8

86 6 0
                                    

  A caminho de Kirov na manhã de quarta-feira, Tatiana viu bombeirosconstruindo novos depósitos de água e instalando o que pareciam serhidrantes de incêndio. Será que Leningrado esperava tantos incêndios?,ela pensou. Será que as bombas alemãs iam incinerar a cidade? Ela nãopodia imaginar isso. Era tão inimaginável como a América.À distância, a grande Catedral e o Mosteiro Smolny começavam aganhar forma e figura irreconhecíveis. Redes de camuflagem eramestendidas sobre a construção por operários, pintadas de verde, marrome cinza. O que fariam os trabalhadores para cobrir o mais difícil, emboramais fácil de se detectar do ar: os pináculos da Catedral de São Pedro eSão Paulo e o Almirantado? Por enquanto, permaneciam em plena eluminosa vista.Antes de sair do trabalho, Tatiana esfregou as mãos e o rosto atéque brilhassem, depois ficou na frente do espelho junto ao seu armário edeu uma longa escovada nos cabelos, deixando-os longos e soltos.Naquela manhã, ela vestia uma saia estampada de flores e uma blusa azulde mangas curtas e botões brancos. Enquanto se examinava no espelho,não conseguia decidir – tinha doze ou treze anos? Era a irmã menor dequem? Ah, sim, de Dasha. Por favor, esteja à minha espera , ela pensouantes de sair apressada.Apressou-se rumo ao ponto de ônibus e lá estava Alexander, quepenas mãos esperando por ela.– Gosto do seu cabelo, Tania – ele disse sorrindo.– Obrigada – ela murmurou. – Eu gostaria de não cheirar como setivesse trabalhado o dia inteiro com petróleo. Petróleo e graxa.– Oh, não – ele disse, revirando os olhos. – Você não estava fazendobombas outra vez?Ela riu.Eles olharam a multidão cansada e carrancuda que esperava o ônibus,entreolharam-se e juntos disseram: – Bonde? – E concordaram,atravessando a rua.– Pelo menos ainda estamos trabalhando – Tatiana disse num tomligeiro. – O Pravda diz que as coisas não vão muito bem com a questãodo emprego na sua América. Emprego pleno aqui na União Soviética,Alexander.– Sim – Alexander disse, inclinando-se sobre ela enquanto andavam. –Não há desemprego na União Soviética ou na prisão Dartmoor, e pelamesma razão.Sorrindo, Tatiana quis chamá-lo de subversivo, mas não o fez.Enquanto esperavam pelo bonde, Alexander disse:– Eu trouxe uma coisa para você. – E deu-lhe um pacotinhoembrulhado em papel marrom. – Eu sei que o seu aniversário foi nasegunda-feira, mas eu não pude antes...– O que é?Surpreendida, ela pegou o pacotinho. Um pequeno caroço brotou emsua garganta.Ele abaixou a voz e disse:– Temos um costume na América. Quando você ganha presentes noseu aniversário, espera-se que você abra-os e agradeça.Tatiana, nervosa, olhou o presente.– Obrigada.Ela não estava acostumada a presentes. Presentes embrulhados?Jamais, mesmo que viessem embrulhados somente em papel marrom.– Não. Abra primeiro. Depois agradeça.Ela sorriu.– O que eu faço? Tiro o papel?– Sim. Rasgue.– E depois?– Depois jogue fora.– O presente inteiro ou só o papel?Ele disse devagar:– Só o papel.– Mas você fez um embrulhinho tão bonito. Porque jogá-lo fora?– É só papel.– Se é só papel, porque você fez o embrulho?

 – Por favor, pode abrir o meu presente? – disse Alexander.Ansiosa, Tatiana rasgou o papel. Dentro estavam três livros: umrobusto volume de Aleksandr Pushkin, denominado O Cavaleiro de Bronzee Outros Poemas, e dois livros menores, um de um autor que ela nuncaouvira falar, chamado John Stuart Mill, intitulado Sobre a Liberdade. Eraem inglês. O terceiro livro era um dicionário de inglês-russo.– Inglês-russo? – Tatiana disse sorrindo. – Ajuda menos do que vocêimagina. Eu não falo inglês. Esse livro era seu quando você chegou aqui?– Sim – ele disse. – E sem ele você não vai conseguir ler o Mill.– Muito obrigada pelos três, ela disse.– O Cavaleiro de Bronze era da minha mãe – disse Alexander. – Elame deu poucas semanas antes de ser presa.Tatiana não sabia o que dizer.– Eu amo Pushkin – disse bem baixinho.– Eu pensei isso. Todo russo ama Pushkin.– Você sabe o que o poeta Maikov escreveu sobre Pushkin?– Não – Alexander respondeu.Perturbada pelo seu olhar, Tatiana tentou lembrar as frases.– Ele disse... Vejamos... "Seus sons não parecem feitos à moda destemundo... como se impregnada com o seu imortal fermento... Todamatéria terrena, emoções, angústia, paixão, foi transmutada à matériacelestial."– "Toda matéria terrena, emoções, angústia, paixão, foi transmutadaà matéria celestial" – Alexander repetiu.Tatiana corou e olhou a rua. Onde estava esse bonde?– Você já leu Pushkin? – ela perguntou numa voz bem fraquinha.– Sim, eu já li Pushkin – Alexander respondeu, pegando o papel deembrulho e jogando-o fora. – O Cavaleiro de Bronze é o meu poemafavorito.– O meu também! – ecoou Tatiana, olhando para ele admirada. –"Houve um tempo, nossas lembranças mantêm seus horrores frescos epróximos, deste relato que me faz sofrer, para contar a vocês, amáveisleitores, uma história que será opressiva."– Tania, você cita Pushkin como uma autêntica russa.– Eu sou uma autêntica russa.O bonde chegou.No Museu Russo, Alexander perguntou:– Quer andar um pouquinho?Tatiana não podia dizer não, mesmo se quisesse.Mesmo se quisesse.Caminharam rumo ao Campo de Marte.– Quando você trabalha? – ela perguntou. – Dimitri está numa missãoem Karelia. Você não precisa fazer nada?– Sim, eu fico na retaguarda – Alexander disse com um sorriso – eensino os outros soldados a jogar pôquer.– Pôquer?– É um jogo de cartas americano. Algum dia talvez eu ensine você ajogar. Além do mais, fui designado como o oficial a cargo de todo orecrutamento e treinamento do Exército Voluntário do Povo. Estou deserviço das sete às seis.

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora