Capítulo 38

51 5 0
                                    

  Uma semana passou. Tatiana não podia dar a descarga no banheiro.Não podia escovar os dentes. Não podia se lavar. Alexander não ficariamuito contente com aquilo. Não tinham notícias dele. Estaria bem?– Quando você acha que eles vão consertar os canos? – Dashaperguntou certa manhã.– Para você convém que não seja logo – disse Tatiana. – Docontrário, você vai ter que começar a lavar roupa outra vez.Dasha aproximou-se de Tatiana e deu-lhe um abraço.– Eu amo você. Você ainda faz piadas.– Não muito boas – disse Tatiana, abraçando a irmã.Era duro viver com dois pequenos baldes de água. O congelamentodos canos era pior. Mas pior ainda era o derramamento da água que aspessoas carregavam para cima. A água saía dos baldes para as escadas econgelava. Todos os dias, a temperatura ia de cinco a vinte graus abaixode zero, e as escadas permaneciam sempre cobertas de gelo. Todas asmanhãs, para pegar água, Tatiana tinha que segurar o balde com umadas mãos, com a outra o corrimão, deslizando para baixo com a bunda.O mais duro era carregar escadas acima o balde cheio. Ela caía pelomenos uma vez e tinha que voltar e pegar mais água. Quanto mais águase derramava nas escadas, mais facilmente ela caía e mais espesso setornava o gelo nas escadas. As escadas traseiras eram ainda maisperigosas. Uma mulher do quarto andar caiu de um lance de escada,quebrou a perna e não podia se levantar. Ela congelou nas escadas,dentro do gelo. Ninguém pôde movê-la antes ou depois.Tatiana, Marina, Dasha e Mamãe, sentadas no sofá, ouviam ometrônomo do rádio com sua incansável batida através das ondas do ar,sua frequência aberta às vezes era interrompida por uma firme correntede palavras. Algumas sensatas, como: "Moscou combate o inimigo comsua própria vida", outras insensatas, do tipo "A ração de pão de novo seráreduzida a 125 gramas por dia para dependentes, 200 gramas paratrabalhadores".Outras palavras às vezes surgiam: "Perdas", "Danos", "Churchill".Stálin falava em abrir uma segunda frente em Volkhov. Mas não antesque Churchill abrisse também uma segunda frente para distrair os alemãesdos países do norte da Europa. Churchill disse que não tinha nem homensnem recursos para abrir uma segunda frente, mas se dizia preparado paracobrir as perdas materiais sofridas por Stálin. Este, mordaz, respondeuque apresentaria essa fatura diretamente ao próprio Führer.Moscou estava nos estertores, toda sua energia gasta na luta contraHitler. A cidade era bombardeada como Leningrado.– Faz um mês que não temos notícia de Babushka Anna – disse Dashanuma noite no final de novembro. – Tania, você tem notícias de Dimitri?– Claro que não – disse Tatiana. – Eu acho que não terei notícias deleoutra vez, Dash. – Ela fez uma pausa. – Tampouco temos notícias deAlexander.– Eu tenho – disse Dasha. – Faz três dias. Eu esqueci de lhes dizer.Querem que eu leia a carta dele?

 Querida Dasha e todas vocês, Espero que esta carta encontre vocês bem. Vocês me esperam de volta? Eu espero voltar para vocês. Meu comandante me mandou a Kokkorevo, um povoado de pesca, mas sem nenhum pescador vivo. No lugar onde era o povoado ficou um buraco, aberto pelas bombas. Na prática, não tínhamos caminhões deste lado e muito menos combustível para os que tínhamos. Éramos uns vinte andando por ali com um par de cavalos. Estávamos testando o gelo para ver se aguentava um caminhão com comida e munições, ou pelo menos um cavalo com um trenó cheio de alimentos. Caminhamos sobre o gelo. É tão frio que vocês pensariam que se formara há pouco, mas não. Era surprendentemente fino em alguns pontos. Logo de cara, perdemos um caminhão e dois cavalos, e ficamos nas margens do lago Ladoga olhando o gelo se espalhar na nossa frente, e aí eu disse: "esqueçam isto, me deem o maldito cavalo!" Nele montei e cavalguei a égua durante quatro horas, em cima do gelo, até Kobona! As temperaturas andavam ao redor de doze graus abaixo de zero. Eu disse: "este gelo será suficiente." Tão logo eu voltei, com um trenó cheio de comida, fui colocado no comando do regimento de transporte – outro nome para mil Voluntários do Povo. Ninguém cederia soldados de verdade para isso. Antes que o gelo ficasse espesso o suficiente para os caminhões, os voluntários tinham que montar nos cavalos e nos trenós e ir até Kobona pegar farinha e outros suprimentos, e voltar cavalgando. Eu vou lhes dizer, sua Babushka teria se saído melhor do que alguns daqueles homens. Eles nunca haviam montado cavalos ou nunca haviam saído no frio, ou ambas as coisas, porque não posso lhes dizer quantos muitos acidentes tivemos, com homens caindo dos cavalos, caindo através do gelo, se afogando. No primeiro dia, perdemos, para começar, um caminhão e uma carga de querosene. Estávamos tentando trazer combustível para Leningrado. A escassez de gasolina é quase tão ruim quanto a escassez de comida. Não há petróleo para acender os fornos para assar o pão. Dissemos então: vamos esquecer os caminhões por alguns dias, e só usar os cavalos. Pouco a pouco os cavalos de Kobona cobriram os trinta quilômetros até Kokkorevo. Certo dia, trouxemos mais de vinte toneladas de alimentos. Embora não seja suficiente, já é alguma coisa. Estou em Kobona agora, colocando comida nos trenós, olhando, angustiado, a farinha, sabendo que vocês não têm mais. A ração das tropas da linha de frente foram reduzidas a meio quilo de pão por dia. Ouvi dizer que a ração dos dependentes caiu para 125 gramas. Vamos tentar recuperá-las. Nem preciso dizer a vocês que os alemães não estão nada contentes com a nossa pequena estrada de gelo. Sem dó nem piedade eles a bombardeiam dia e noite. À noite, menos. Durante nossa primeira semana perdemos mais de três dúzias de caminhões, e com eles muita comida. Por fim, ficou claro que eu não podia mais dirigir os caminhões; não era a melhor maneira de usar minhas habilidades. Agora estou do lado de Kokkorevo, na função de artilheiro, contra os aviões alemães. Estou atrás de uma arma antiaérea, Zenith. Ela dispara fogo de metralhadora com bombas. Sinto enorme satisfação em saber que explodi um avião que ia afundar um caminhão carregado de comida para vocês. O gelo está grosso agora, exceto por uns poucos pedaços mais fracos, e nós temos alguns bons caminhões. Eles podem atravessar o lago rapidamente, na base de quarenta quilômetros por hora. Os outros soldados e eu chamamos a estrada de gelo de Estrada da Vida. Soa bem, vocês não acham? Ainda assim, sem Tikhvin nós não podemos levar muita coisa a Leningrado. Devemos recuperar Tikhvin. O que você acha, Dasha, devo me apresentar como voluntário nessa iniciativa? Atacar os alemães montado na minha esfomeada égua cinzenta, com a minha metralhadora novinha, uma Shpagin, nos meus braços? Estou brincando, eu acho. De todo modo, a Shpagin é uma arma fantástica. Eu não sei quando poderei voltar a Leningrado outra vez, mas quando puder fazê-lo levarei comigo comida, portanto aguentem firme e sigam em frente. Coragem.

Atenciosamente, Alexander

 Ande, ande, não levante os olhos, Tatiana disse a si própria. Cubra orosto com o cachecol, coloque-o sobre os olhos se for preciso,simplesmente não olhe para cima. Não veja Leningrado, não veja o seupátio onde os corpos se empilham, não olhe as ruas onde os corpos sãojogados na neve. Levante o pé e passe por cima deles. Ande ao redordos corpos, não olhe... você não quer ver. Naquela manhã, Tatiana viuum homem há pouco morto no meio da rua sem metade do torso. Nãofoi uma bomba. Seus quadris haviam sido cortados com uma faca. Elatocou a arma de Alexander que trazia no bolso do capote, e, sem dizeruma palavra, moveu-se através dos montes de neve, o olhar fixado nochão à sua frente.Tinha que brandir a arma de Alexander umas duas vezes, sozinha narua, na escuridão da nascente manhã.Agradecer a Deus por lhes mandar Alexander.Em fins de novembro, uma onda explosiva estourou o vidro do quartoonde elas comiam. Cobriram o buraco com os cobertores de Babushka.Não tinham mais nada. A temperatura do quarto caíra em trinta graus,passando de quase congelante para muito mais abaixo disso.Tatiana e Dasha carregaram a bourzhuika para o seu quarto,colocando-a na frente do sofá de Mamãe, para que ela ficasse aquecidaenquanto costurava os uniformes. A fábrica continuava incentivando ainiciativa privada, pagando-lhe vinte rublos para cada uniforme extra quecosturasse acima de sua cota. Demorou-lhe todo o mês de novembropara costurar cinco uniformes. Ela então deu a Tatiana cem rublos,dizendo-lhe que fosse à loja e comprasse alguma coisa.Tatiana voltou com um copo de sujeira negra. Era açúcar derretido dequando os alemães bombardearam os depósitos de Badayev, emsetembro. Tão animada quanto possível, Tatiana disse:– Quando a sujeira descer ao fundo, nosso chá ficará mais doce.Dê um pulo, não levante os olhos, Tatiana, fique na fila e mantenhaseu lugar; se perder seu lugar não haverá nenhum pão para você e entãoterá que achar outra loja na cidade. Fique aí, não se mexa, alguém virá elimpará tudo isso. Uma bomba caíra na rua, atingindo a fila em que estavaTatiana, bem na Fontanka, estraçalhando meia dúzia de mulheres. O quefazer? Cuidar dos vivos? Ou de sua família? Ou mover os mortos? Nãolevante os olhos, Tatiana.Não levante os olhos, Tatiana, mantenha-os grudados na neve e nãoolhe nada, somente suas botas arrebentadas. Mamãe bem que podiahaver feito para você outro par de botas. Mas Mamãe agora não podemais costurar à mão um uniforme extra, com ou sem ajuda de Dasha,com ou sem a sua ajuda, quando em outubro ela costurava dezuniformes por dia na máquina.Alexander! Quero manter minha promessa a você. Quero permanecerviva, mas não vejo como, mesmo com minhas mínimas necessidades emeu metabolismo atrofiado, poderei aguentar com duzentos gramas pordia dos quais 25% é celulose comestível – serragem, casca de pinheiro.Pão encharcado com bolo de sementes de algodão, alimento antesconsiderado venenoso para os humanos – não mais. Pão que não é pão,mas bolacha dura – farinha e água. Biscoito do mar, assim você chamavaisso? Pão que é escuro e pesado como pedra.Não aguento viver com duzentos gramas por dia desse pão.Tampouco posso sobreviver com uma sopa rasa e nem mesmo comum mingau aguado.Luba Petrova não podia. Vera não podia. Kirill não podia. Nina Iglenkonão podia. Podem Mamãe e Dasha? Pode Marina?Seja lá o que estiver fazendo, até agora não é suficiente.Viver exigirá de mim alguma coisa a mais, alguma coisa que não édeste mundo. É preciso alguma outra força que possa ocupar o querercom nada, a fome com nada. O frio com nada.O desejo de comida deu lugar a uma doença terminal, uma pálida econtagiosa perda de interesse em tudo e em todos. Tatiana ignoravacompletamente o bombardeio. Não tinha forças para sair correndo, nãotinha forças para lançar-se ao chão, não tinha forças para ajudar a moveros corpos ou levantar vítimas. Um torpor penetrante, uma apatiaabrangente como uma fortaleza permeavam e cercavam Tatiana, umafortaleza rompida somente por borrifos de remorsos que pareciamsentimento.Sua mãe sacudia o seu coração, Dasha agitava os seus afetos. Marina,até mesmo Marina, apesar de sua miserável avidez, tocava de algumaforma o sentimento de Tatiana, que não a julgava mas estavadesapontada. Nina Iglenko provocava alguma pena enquanto esperava oseu último filho morrer, antes de ela mesma morrer.Tatiana tinha que parar de sentir. Ela já tinha os dentes preparadospara atravessar o dia. Teria que prepará-los melhor. Porque já não haviacomida.Não vou tremer e não vou desistir da minha curta vida, não vouabaixar a minha cabeça. Encontrarei uma maneira de levantar os meusolhos. Manter tudo do lado de fora. Exceto você, Alexander. Mantervocê dentro de mim.  

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora