Capítulo 42

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Elasdeitavam debaixo dos cobertores num estado de semiconsciência. Durante a noite,Tatiana acordou com uma batida na porta. Tardou-lhe muitos minutos livrar-se nacama de casacos e cobertores. Vacilante, caminhou através da entrada escura.Alexander estava na porta e vestia seu uniforme branco de combate. Trazia sobreas orelhas e cabeça um chapéu acolchoado e nas mãos segurava um cobertor. – Oque aconteceu? – ela perguntou, pondo a mão no peito. Foi só vê-lo e o coraçãode Tatiana pulsou mais rápido, mesmo no meio da noite. Seus olhos se abrirammais. Ela estava acordada. – O que aconteceu? – Nada – ele disse. – Você eDasha se aprontem. Onde está ela? Precisa se aprontar. – Aonde vamos? Dasha nãopode se levantar – Tatiana disse. – Você sabe disso. Ela está tossindo feio. –Ela vai se levantar – Alexander respondeu. – Vamos. Hoje à noite tem umcaminhão de armamentos saindo da guarnição. Eu levo vocês até Ladoga, e de lávocês vão para Kobona. Tania! Eu vou tirar vocês de Leningrado. Ele entrou efoi ao quarto. Dasha estava debaixo de cobertores e casacos. Seus lábios não semexiam, seus olhos não abriam. – Dasha – Alexander sussurrou. – Dashenka,querida, acorde. Temos de sair daqui. Agora mesmo, temos que ir embora. Rápido.Sem abrir os olhos, Dasha murmurou: – Não consigo me levantar. – Você conseguee vai se levantar – ele disse. – Um caminhão de armamentos está esperando nasbarracas. Levo vocês até o lago Ladoga. E depois atravessamos o lago. Hoje ànoite. Vocês vão para Kobona, onde tem comida, e depois podem ir para junto desua Babushka, em Molotov. Mas você tem que se levantar agora mesmo, Dasha.Agora, vamos. – Ele tirou-lhe os cobertores. – Não posso ir até as barracas –Dasha sussurrou. – Tania tem um trenó. E olhe! – Ele abriu o casaco e tirou umpedaço de pão branco com casca. Partiu um pedaço da parte interna mais macia ecolocou na boca de Dasha. – Pão branco! Coma. Isso vai lhe dar forças. Dashaabriu a boca. Ela mastigou em silêncio sem abrir os olhos e depois tossiu.Tatiana estava perto, enrolada em seu próprio casaco, um cobertor sobre osombros, olhando o pedaço de pão de um jeito que um dia olhou para Alexander.Talvez Dasha não coma todo o pão. Talvez sobre um pedaço para mim. Era umpedaço pequeno. Dasha comeu tudo. – Tem mais? – ela perguntou. – Só a casca –Alexander respondeu. – Como isso também. – Mas não dá para mastigar. – Euengulo inteira. – Dasha... Talvez sua irmã possa comer este pedaço. – Ele dissecom firmeza. – Ela está aí em pé, não está? Alexander olhou para Tatiana, queestava ao seu lado. Ela balançou a cabeça e olhando o pão disse: – Dê o pedaçoa ela. Estou em pé. Alexander respirou fundo e deu a casca para Dasha; depois,levantando-se, disse à Tatiana: – Vamos indo. O que você precisa para seaprontar? Posso ajudá-la com a mala? Tatiana observou-o com olhos vazios. – Nãotenho nada. Estou pronta agora. Estou de botas. Com o meu casaco também.Vendemos tudo. E queimamos o que sobrou. – Tudo? – ele perguntou na escuridão –Uma palavra, transbordante de passado. – Eu tenho... os livros – elainterrompeu. – Traga-os – Alexander disse e inclinando-se mais junto dela,continuou: – Leia a contracapa do livro de Pushkin quando você se sentir vítimada má sorte. Onde estão os livros? Alexander arrastou-se debaixo da cama parapegar os livros, enquanto Tatiana encontrou a velha mochila de Pasha. Ele entãolevantou Dasha e a forçou a ficar em pé. No escuro, as três silhuetas lutavamem silêncio, só se ouvindo os gemidos intermitentes de Dasha e a tosse que lhesaía do peito, ruídos que quebravam a noite em cacos. Finalmente, Alexanderpegou Dasha no colo e a tirou do apartamento, com cuidado deslizaram escadaabaixo. Já na rua, na noite cruel, ele deitou Dasha no trenó, cobrindo-a com ocobertor que trouxera. Alexander e Tatiana pegaram as rédeas e devagarempurraram Dasha ao longo das ruas, através da neve, no trenó azul de rodasvermelhas da infância das meninas. – O que vai acontecer com Dasha? – Tatianaperguntou baixinho. – Em Kobona tem comida e um hospital. Assim que elamelhorar, vocês vão para Molotov. – Ela parece mal. Alexander não disse nada. –Por que ela tosse desse jeito? – Tatiana perguntou e também tossiu. Alexandernão disse nada. – Faz tempo que não tenho notícias de Babushka. – Ela está bemmelhor do que você – Alexander disse. – Está difícil para você empurrar? Andedo meu lado. Solte o trenó. – Não. – O esforço era tremendo. – Me deixeajudá-lo. – Economize suas forças. – Ele fez com que ela soltasse a corda.Tatiana soltou e caminhou ao lado dele. – Segure no meu braço – Alexander dissea ela. Ela segurou. A noite estava tão fria, Tatiana não sentia mais os pés.Leningrado estava parada e silenciosa, quase completamente escura. No céu, asfaixas de luzes translucentes da aurora boreal lançavam listras verdes naescuridão. Tatiana virou-se para olhar Dasha, que seguia deitada, imóvel, notrenó. – Ela parece tão fraca – Tatiana disse. – Ela está fraca. – Como vocêconsegue? – ela perguntou numa voz baixa – carregar sua arma, dar plantão, irlutar no front, e ainda assim ter forças para cuidar de nós todas? – Eu dou avocês – disse Alexander, olhando para ela – o que vocês mais precisam de mim.Em silêncio, eles trilharam através da neve. Alexander ficou mais lento.Tatiana tirou de suas mãos a segunda corda, ele não protestou. – Eu me sentireimelhor vendo vocês duas fora de Leningrado. Eu me sentirei melhor sabendo quevocês estão seguras – ele disse. – Você não acha que assim será melhor? Tatiananão respondeu. Melhor para comer, sim. Melhor para Dasha comer, sim. Mas nãoera melhor para Alexander, nem melhor para ela. Não era melhor parar de vê- lo.Ela não disse nenhuma dessas coisas. E ouviu então a suave voz dele dizendo: –Eu sei. E ela queria chorar, mas sabia que chorar era impossível. Seus olhos,expostos à geada negra, doloridos por causa do vento, meio fechados por causado frio, estavam secos. Quando eles finalmente chegaram às barracas, uma horamais tarde, o caminhão militar estava prestes a sair. Alexander carregou Dashapara dentro do veículo coberto. Seis soldados sentavam no piso e uma jovemmulher que segurava um bebê estava junto a um homem que mal parecia vivo. Eleparece pior que Dasha, Tatiana pensou. Porém, quando ela olhou para Dasha,percebeu que a irmã já não podia nem sentar-se sozinha. Cada vez que Alexandercolocava Dasha sentada, ela pendia para um lado. Tatiana precisava de ajudapara subir no caminhão. Ela não podia pular ou erguer-se com os braços.Precisava de alguém para levantá-la. Os outros ocupantes do caminhão estavamindiferentes a ela, incluindo Alexander, que tentava, ansioso e solícito, fazercom que Dasha abrisse os olhos. Alguém do lado de fora, gritou: – Vai! Então, ocaminhão, lentamente, começou a se mover para adiante, na neve. – Shura! –Tatiana gritou. Alexander arrastou-se no piso do caminhão, agarrando Tatianapelos braços e puxando-a para dentro. – Você me esqueceu? – ela perguntou, eviu os olhos abertos de Dasha observando-os. A porta traseira do caminhãofechou, e o seu interior ficou muito escuro; e, no escuro, apoiada nas mãos enos joelhos, Tatiana chegou até Dasha. Em silêncio, eles se dirigiram ao lagoLadoga. Alexander estava sentado no chão junto de seu rifle. Dasha deitada nopiso coberto de serragem, apoiava a cabeça no colo dele. Tatiana levantou ospés da irmã e enfiou-se debaixo deles, mais perto de Alexander. Dasha agoraestava quase em cima deles. Alexander tinha sua cabeça; Tatiana, os pés.Alexander apoiou-se na parede da cabine e Tatiana apoiou-se na parede docaminhão. Ela pegou um pedaço de serragem e colocou na boca, tinha gosto depão. Pegou outro pedaço. – Não coma isso, Tania – disse Alexander. Como ele podiavê-la? – Isso é sujeira. As horas correram. No cintilar ocasional de algumaluz, Tatiana pegava Alexander olhandoa. Seus olhos se encontravam e assimficavam até que diminuísse a luz de outro veículo que passava. Sem dizernenhuma palavra, sem se tocarem, eles sentados no piso do caminhão, a cadamomento de luz, olhavam-se de novo. Minutos sem fim passaram. – Que horas são?– Tatiana perguntou baixinho. – Duas da manhã. Logo chegaremos lá – Alexanderdisse. Tatiana queria comer e não queria mais sentir frio. Queria que a irmãmelhorasse, para se levantar. Ao mesmo tempo, ir para Molotov parecia o fim.Ela esperou por outra luz para que assim pudesse captar o olhar de Alexanderpor um ou dois segundos. Seus olhos acostumaram-se ao escuro, e ela podia distinguirsua silhueta, sua cabeça e quepe, o formato de seus braços ao redor de Dashapara mantê-la aquecida. Tatiana espremeu as pernas de Dasha primeirosuavemente, depois com mais força. Ela sacudiu as pernas de Dasha e depois commais força. Dasha se mexeu um pouco e tossiu. Aliviada, Tania fechou os olhos,abrindo-os em seguida outra vez. Não queria fechar os olhos. Logo ela iriaatravés do gelo do lago Ladoga, longe dele. Se eu me esticar, posso tocá-lo ,ela pensou. – Tania? – ela ouviu a voz dele. – Sim, Alexander? – Qual é o nomedo povoado onde mora sua avó? – Lazarevo. Ela esticou sua mão para ele. Eleesticou sua mão para ela. – Lazarevo. Uma luz que passa. Alexander e Tatianatocaram-se. Escuridão de novo. Alexander dormia. Dasha dormia. Dentro do caminhãotodos tinham os olhos fechados, salvo Tatiana, que não podia tirar os olhos decima de Alexander dormindo. Talvez eu esteja morta , ela pensou. Mortos nãopodem fechar os olhos. Talvez seja por isso que não possa dormir. Estou morta.Mas ela não podia fechar os olhos. Ela o observava. As duas mãos de Alexandercontinuavam na cabeça de Dasha. – Alexander, por que você não comprou umsorvete também? – Eu não queria. – Então por que você olha para o meu sorvetecom tanta vontade? – Não estou olhando para o seu sorvete com toda essavontade. – Não? Quer experimentar um pouco? – Tudo bem. – Ele se curvou e deuuma lambida no cremoso sorvete de Tatiana. – Não é bom? – Muito bom, Tania. Ocaminhão finalmente parou. Alexander abriu os olhos. As outras pessoas semexeram. A mulher com o bebê levantou-se primeiro e sussurrou ao marido: –Leonid, vamos, querido, hora da travessia, levante-se, amor. Alexander saiudebaixo de Dasha, ficou em pé e deu o braço a Tatiana. – Levante-se, Tania –ele disse suavemente – É hora. – Ele a levantou. Ela oscilava de fraqueza. –Shura – ela disse. – O que vou fazer com Dasha em Kobona? Ela não consegueandar e eu não sou você, não posso carregá-la. – Não se preocupe. Lá temsoldados e médicos que podem ajudar você. Olhe só aquela mulher – elesussurrou. – Ela carrega o bebê, mas o marido mal se aguenta em pé, como Dasha.Ela vai conseguir. Venha, eu ajudo você a descer. Ele pulou e estendeu os seusbraços para Tatiana, que não poderia ter descido sozinha mesmo que quisesse.Alexander levantou-a e trouxea para baixo, bem na frente dele. Ele não asoltou. – Vá pegar Dasha, Shura – Tatiana sussurrou. – Vamos logo! Mexam-se! –um sargento gritou atrás deles. Alexander soltou Tatiana e, severo, virou-se aoredor. O sargento logo desculpou-se com o capitão. Tatiana viu outros quatrocaminhões, suas luzes acessas brilhando sobre o campo coberto de neve maisadiante. Percebeu que não era um campo. Era o lago Ladoga. Era a Estrada daVida. – Vamos, vamos, camaradas! Caminhem para o lago. Há um caminhão esperandopor vocês. Vamos, quanto mais rápido vocês subirem, mais rápido chegaremos. Sãotrinta quilômetros, umas duas horas sobre o gelo, mas tem manteiga lá do outrolado, e talvez um pouco de queijo. Se apressem! A mulher com o bebê já descia acolina, o marido mancava ao lado dela. Dasha estava nos braços de Alexander. –Levante-a, Shura – disse Tatiana. – Vamos fazê-la andar. Ele colocou Dasha nochão, mas suas pernas se dobraram. – Vamos, Dasha, – disse Tatiana. – Andecomigo. Tem manteiga lá do outro lado, você não ouviu? Dasha gemeu. – Ondeestou? – ela sussurrou. – Você está na Estrada da Vida. Agora, vamos embora.Logo vamos comer e vamos ficar bem. Um médico vai examinar você. – Você vem coma gente? – Dasha perguntou a Alexander. Ele a segurou com o braço. – Não,Dasha, eu fico. Meu tempo fora da base já se esgota. Assim que vocês chegarem aMolotov me escrevam, quando eu tiver uma folga, venho ver vocês. Alexanderdisse isso sem olhar para Tatiana, mas Tatiana não podia ouvir isso sem olharpara Alexander. Dasha andou poucos metros sozinha e então afundou-se na neve. –Eu não consigo. – Você consegue, você vai conseguir – disse Tatiana. – Vamos.Mostre a ele que sua vida tem um significado. Mostre-lhe que você pode andaraté o caminhão para se salvar. Vamos, Dasha. Eles a colocaram de novo em pé,então ela caminhou outros poucos metros e parou. – Não – ela sussurrou. ComDasha apoiada neles, Alexander e Tatiana desceram a ladeira rumo ao lago, ondeo caminhão militar esperava. Alexander levantou Dasha e deitou-a no piso docaminhão. Desceu então para ajudar Tatiana, que mal se aguentava em pé. Ela seapoiou na lona, ouviu gritos. O caminhão acelerou o motor. – Vamos, Tania, euajudo você a entrar – Alexander disse. – Você precisa ficar forte para cuidarde sua irmã. – Ele chegou bem perto dela. Vou ficar forte, ela pensou haverdito. – Não se preocupe com o bombardeio – Alexander disse. – Usualmente, tudose acalma à noite. – Não estou preocupada – Tatiana disse, vindo aos braçosdele. Ele a abraçou. – Fique forte por mim, Tatiana – Alexander disse rouco. –Salve-se para mim. – É o que eu faço, Shura – Tatiana disse. – Eu me salvo paravocê. Alexander curvou-se para ela, mas Tatiana não podia nem levantar acabeça. Ele beijou o chapéu dela. Continuaram abraçados por mais algunssegundos. – É hora! – alguém gritou. Alexander ajudou Tatiana dentro docaminhão. Ele subiu para deixar as duas meninas confortáveis, colocando acabeça de Dasha no colo de Tatiana. – Assim está bem? – ele perguntou. As duasirmãs responderam que sim. Ele se ajoelhou na frente de Dasha e disse: – Agora,lembre-se, quando lhe oferecerem comida em Kobona, coma pedaços pequenos. Nãoengula tudo de uma vez, isso pode arrebentar o seu estômago. Coma pedaçospequenos, e devagar. Você se acostuma com isso, depois poderá comer mais. Tomesopa com colheradas pequenas. Tudo bem? Dasha pegou-lhe a mão. Ele a beijou natesta. – Até logo, Dasha. Vejo você em breve. – Adeus – sussurrou Dasha. – Comoa minha irmã chama você? Shura? Alexander olhou para Tatiana. – Sim, Shura. –Adeus, Shura – disse Dasha. – Eu amo você. Tatiana fechou os olhos para nãovê-lo falar. Se pudesse cobrir suas orelhas, teria feito isso. – Eu amo vocêtambém – Alexander disse a Dasha. – Não se esqueça de me escrever. Depois queele se levantou, Dasha disse: – Diga adeus à Tania. Ou vocês já se despediram?– Adeus Tatiana – ele disse. – Adeus – ela respondeu, olhando para ele. – Tãologo vocês cheguem a Molotov, quero notícias suas, prometem? – Alexander! – Dashagritou. – Sim? – Ele se inclinou. – Me diga, há quanto tempo você ama minhairmã? Alexander olhou para o rosto de Tatiana e depois para o de Dasha e destade volta a Tatiana. Ele abriu a boca para falar e depois a fechou com umtremular de cabeça. – Há quanto tempo? Me diga. Olhe para todos nós aqui, quesegredos ainda podemos ter? Me diga, querido. Me diga. Queixo firme, Alexanderdisse enérgico: – Dasha, eu nunca amei sua irmã. Nunca.Eu amo você. Você sabedisso. – Você me disse que no próximo verão talvez nos casássemos – disseDasha, débil. – Era verdade isso? Ele assentiu e respondeu: – Claro que eraverdade. No próximo verão eu volto e então nos casaremos. Agora, vá. Ele mandouum beijo a Dasha e desapareceu sem nem mesmo olhar para Tatiana, e ela queriadesesperadamente só um pequeno e último olhar, quase no escuro, os olhos suavesdele nela pousados, para que assim pudesse ver um pouco de verdade. Mas ele nãoolhou para ela. Ela não viu nenhuma verdade. Ele nem passou perto dela. Elapercebeu que Alexander a negava. Baixaram a lona, o caminhão arrancou, e elesde novo estavam no escuro. Só que agora Alexander não estava entre a escuridãoe a luz, não havia luar, só tiroteio, e o som de explosões ao longe, as quaisTatiana mal podia ouvir, tão alto era o som das explosões dentro do seu peito.Finalmente ela fechou os olhos, de forma que Dasha, deitada com os olhosabertos, não podia olhar para cima e ver o que estava tão claro no rosto deTatiana. – Tania? Ela não respondeu. Doía-lhe o nariz por causa do ar geladoque respirava. Abriu os lábios e respirou pela boca. – Tanechka? – Sim, Dasha,querida? – ela sussurou por fim. – Você está bem? – Abra os olhos, irmã. Nãopoderia, não abriria. – Abra-os. Tatiana abriu os olhos. – Dasha, estou muitocansada. Você fechou os seus olhos durante horas. Agora é a minha vez. Empurreio seu trenó e segurei suas pernas, e ainda ajudei você a descer a colina. Agoravocê está deitada em cima de mim, e eu só quero fechar meus olhos por umsegundo, por um minuto. Tudo bem? Dasha não disse nada, mas olhou para Tatianacom lúcida clareza. Tatiana segurou o rosto da irmã e fechou os olhos, ouvindoa tosse úmida de Dasha. – Como você se sentiu, Tania, quando ele disse quenunca amou você? Com o maior esforço, Tatiana evitou um gemido de dor. – Muitobem – ela disse rouca. – Assim deve ser. – Então por que seu corpo encolheucomo se ele tivesse agredido você? – Não sei o que quer dizer com isso –Tatiana disse num tom fraco. – Abra os olhos. – Não. – Você o ama desesperadamente,não? – Dasha falou. – Como você conseguiu esconder isso de mim, Tania? Você nãopoderia amar tanto um homem. Eu não poderia amar tanto um homem. – Dasha –disse Tatiana com firmeza e graça –, eu amo mais você. – Ela não abriu os olhosenquanto falava. – E você não escondeu isso de mim – disse Dasha. – De jeitoalgum. Você colocou o seu amor por ele numa prateleira, não num armário. Marinatinha razão. Eu estava cega. Ela fechou os olhos e sua voz repercutiu nocaminhão, chegando à mulher com o bebê e o marido, à Tatiana, ao motorista. –Você deixou esse amor em mil lugares para que eu o visse. Eu agora vejo cada umdesses dolorosos lugares. – Ela começou a chorar, rompendo num ataque de tosse.– Mas você era uma criança! Como podia uma criança amar alguém? Dasha ficouquieta e depois gemeu. Eu cresci, Dasha, pensou Tatiana. Em algum lugar entre olago Ilmen e o começo da guerra, a criança crescera. Do lado de fora ouvia-se osom distante de canhões, fogo de morteiro. Dentro do caminhão havia silêncio. Tatianapensava no bebê que a mãe segurava, uma jovem mulher de pele amarelada e comlesões nas faces. O marido apoiava-se em seu ombro; na verdade, ele mais que seapoiava, caía em cima de sua mulher, apesar da força que ela fazia paraendireitá-lo, ele não ficava ereto. A mulher começou a chorar. O bebê nuncaemitiu um som. – Posso ajudar a senhora? – Tatiana falou com a mulher. – Ouça,você tem seus próprios problemas – disse a mulher bruscamente. – O meu maridoestá muito fraco. – Eu não sou um problema – Dasha disse. – Me levante, Tania,e me deixe apoiada na parede. O meu peito dói muito para que eu continuedeitada. Vá, ajude-a. Tatiana arrastou-se no piso do caminhão até a mulher e omarido. A mulher segurava o bebê com os dois braços e não o soltava. Tatianasacudiu um pouco o homem, puxando-o para cima, mas ele caiu de novo, e dessavez foi ao chão. Estava pesadamente enrolado num cachecol, seu casacoabotoava-se até o pescoço. Tatiana demorou dez minutos para desabotoá-lo. Amulher não parava de falar com ela. – Ele não está nada bem, meu marido. Eminha filha não está melhor. Não tenho leite para ela. Sabe, ela nasceu emoutubro. Que sorte! Uh, que má sorte para um bebê nascer em outubro. Quandofiquei grávida, em fevereiro passado, estávamos tão felizes. Achamos que era umsinal de Deus. Acabávamos de casar em setembro. Estávamos tão excitados. Nossoprimeiro bebê! Leonid trabalhava no departamento de transporte público; ele nãopodia deixar o emprego e sua ração era muito boa, mas aí os bondes pararam, eele não tinha mais o que fazer... por que você está desabotoando-o? Sem esperaruma resposta, a mulher continuou: – Eu sou Nadezhda. Minha filha nasceu e eunão tinha leite para ela. O que dar à menina? Tenho dado leite de soja, masisso lhe provoca uma terrível diarreia, tive que parar. E meu marido realmenteprecisava se alimentar. Graças a Deus, finalmente subimos no caminhão. Há muitotempo esperávamos sair de Leningrado. Agora tudo ficará bem. Em Kovona haverápão e queijo, alguém disse. O que eu não faria para ver um frango, ou algumacoisa quente? Como até carne de cavalo, não me importa. Só alguma coisa paraLeonid. Tatiana tirou seus dois dedos do pescoço do homem e, com muito cuidado,o abotou de novo, enrolando o cachecol ao redor do pescoço dele. Ela o moveuligeiramente de forma que ele não ficasse em cima das pernas da esposa e voltoua sentar ao lado de Dasha. Dentro do caminhão, um silêncio mortal. Tudo o queTatiana podia ouvir era a respiração rasa de Dasha, quebrada por surtos de tosse.Isso, e Alexander dizendo que nunca a amou. As duas irmãs fecharam os olhospara não ver a mulher com sua bebê morta e seu marido morto. Tatiana colocou amão na cabeça de Dasha. Dasha não a removeu. Chegaram a Kobona ao raiar do dia– o dia raiando, uma névoa púrpura no horizonte escuro. Os traços do rosto deDasha tornaram-se opacos ao invés de vagos. Por que Tatiana notava agora, assimde repente, a respiração ruidosa de Dasha? – Dasha, você pode se levantar? –Tatiana perguntou. – Já chegamos. – Não consigo – ela disse. Nadezhda gritavapor alguém que fosse ajudá-la e ao marido. Ninguém apareceu. Veio, sim, umsoldado, que levantou a lona da traseira do caminhão e resmungou: – Todo mundofora. Temos que recarregar e voltar. Tatiana puxou Dasha. – Vamos, Dasha,levante-se. – Vá buscar ajuda, Tania – Dasha disse. – Eu não consigo mais memexer. Tatiana puxou a irmã para cima para que ficasse de quatro. – Você searrasta até a beirada e eu ajudo na descida. – Você pode ajudar o meu marido adescer? – disse Nadezhda suplicante. – Ajude-o, por favor. Você é tão forte.Viu que ele está doente? Tatiana balançou a cabeça. – Ele é muito grande paramim. – Oh, vamos. Você está se mexendo. Ajude a gente, sim? Não seja egoísta. –Espere – disse Tatiana. – Vou ajudar minha irmã a descer, e depois ajudo vocês.– Deixe-a em paz – Dasha disse a Nadezhda. – Seu marido está morto. Deixe acoitada da minha irmã em paz. Nadezhda estremeceu. Dasha arrastou-se,movendo-se como um soldado no piso do caminhão. Na beirada, Tatiana girou Dashaao redor, baixando-a do caminhão, as pernas primeiro. As pernas de Dashaatingiram o chão, e o resto do seu corpo foi junto e caiu. Ela ficou na neve. –Dasha, vamos, por favor, não posso levantar você sozinha – disse Tatiana. Omotorista do caminhão chegou perto e, com um movimento, colocou Dasha em pé. –Aguente firme, camarada. Aguente firme e caminhe até a tenda de campo. Eles lhedarão comida e chá quente. Agora, vá. De dentro do caminhão, Nadezhda gritou: –Não se esqueçam de mim aqui! Tatiana não queria ficar ali para ouvir Nadezhdadescobrir a verdade sobre o marido e a filha. Virando-se para Dasha, ela disse:– Pode me usar como uma muleta. Me coloque debaixo do seu braço e ande comigo.– Ela apontou para uma ladeira rasa. – Olhe só, estamos no rio Kovona. – Eu nãoconsigo. Não pude caminhar com você e Alexander na descida do outro lado, nãoposso subir uma colina agora só com você. – Não é uma colina. É uma encosta.Use toda a raiva que você sente por mim. Use-a, e suba a maldita encosta,Dasha. – Tão fácil para você, não? – disse Dasha. – Então é isso? – Tatianabalançou a cabeça. – Tão fácil. Você só quer viver, e isso é tudo. – Eu queroviver. Mas isso não é tudo. – Elas iam tropeçando através da neve, Dashasegurando em Tatiana. – E você? Não quer viver? Dasha não respondeu. – Vamos emfrente – disse Tatiana. – Você está indo muito bem. Não tem ninguém para nosajudar. – Ela apertou a irmã e sussurrou de forma intensa: – Somos só você eeu, Dasha! Os soldados estão ocupados, as outras pessoas ajudam sua própriagente. Como eu. E você quer viver. No verão, Alexander virá a Molotov e vocêsse casarão. Dasha reuniu força suficiente para rir suavemente. – Tania, vocênunca para, não é? – Nunca – disse Tatiana. Dasha caiu na neve e não se levantava.Desesperada, Tatiana rodopiou ao redor e viu Nadezhda subindo a colina sozinha,sem a filha, sem o marido. Tatiana correu a ela. – Nadezshda, por favor, meajude. Me ajude com Dasha, ela caiu na neve. Nadezshda livrou-se da mão deTatiana. – Fique longe de mim. Você não vê que estou sozinha agora? Tatianaviu. – Por favor, me ajude. – Você não me ajudou. E agora estão todos mortos.Me deixe em paz. – Nadezshda afastou-se. De repente, Tatiana ouviu uma vozfamiliar: – Tatiana? Tatiana Metanova? Ao virar-se na direção da voz, ela viuDimitri que, mancando, se aproximava, apoiado em seu rifle. – Dimitri! – Elacaminhou até ele. Ele a abraçou. – Me ajude, Dima, por favor. Minha irmã! Olhe,ela caiu. Rápido, Dimitri foi a Dasha. – Vamos – ele disse. – Eu ainda estouferido. Não posso carregá-la sozinho. Vou chamar outro soldado. – Ele se viroupara Tatiana e deu-lhe outro longo abraço. – Não posso acreditar que nosencontramos assim. – Ele sorriu e disse: – Deve ser o destino. Dimitriconseguiu alguém para levantar Dasha e levá-la à tenda do hospital do campo,enquanto Tatiana ia penosamente atrás deles sob a luz cor de malva do céu. Natenda do hospital perto do rio Kobona, um médico examinou Dasha. Ele auscultouseu coração, seus pulmões, tomou-lhe o pulso, abriu sua boca, balançou acabeça, levantou-se e disse: – Ela está se consumindo de forma galopante.Esqueçam-se dela. Tatiana deu um passo na direção do médico. – Esquecê-la? Doque o senhor está falando? Dê alguma coisa para ela, um pouco de sulfa... Omedico riu. – Vocês são todos iguais. Todos. Estão achando que eu vou gastarminha preciosa sulfa com um caso terminal? Ficaram loucos? Olhem só para ela.Não tem mais que uma hora de vida. Eu não gastaria um pedaço de pão com ela. Járepararam quanto muco ela está soltando? Já ouviram sua respiração? Tenhocerteza que a bactéria da tuberculose já chegou ao fígado. Saiam e tomem umpouco de sopa e mingau na outra tenda. Se vocês comerem alguma coisa, aindapodem resistir. Tatiana estudou o médico por alguns momentos. – Estou bem? –ela perguntou. – Pode ouvir os meus pulmões? Eu não me sinto bem. O médicoabriu o casaco de Tatiana e pressionou o estetoscópio em seu peito. Em seguida,ele a virou e a examinou nas costas. – Você, menina, precisa de um pouco desulfamilanida. Você tem pneumonia. Uma enfermeira vai cuidar de você. Olga! –Antes de ir embora, ele se virou para Tatiana e disse: – Não chegue perto desua irmã. A tuberculose é contagiosa. Tatiana deitava no chão, enquanto Dashadeitava na cama limpa. Pouco depois, ela ficou muito fria. Tatiana se deitavaao lado dela no estreito catre, bem perto da irmã. – Dasha – ela sussurrou –,toda a minha vida, sempre que eu tinha pesadelos, me aninhava em você, comoagora, na nossa cama. – Eu sei, Tania – sussurrou Dasha. – Você era a mais docedas crianças. Do lado de fora, a luz fazia-se azulada. Tons de azul escuro norosto trêmulo de Dasha. Ela ouviu a voz rouca de Dasha. – Eu não consigorespirar... Tatiana ajoelhou-se no chão diante da cama, abriu a boca de Dasha,e dentro dela, bem dentro dela, soprou um alento frio, brusco, atrofiado,piedoso. Alento sem solo, sem raízes, sem alimentos. Ela respirou de seuspróprios pulmões aos pulmões da irmã. Tatiana tentava respirar fundo, mas nãoconseguia. Por intermináveis minutos, Tatiana respirou na boca de Dasha, paradentro dos pulmões de Dasha, o raso sussurro de vida. Uma enfermeiraaproximou-se e afastou Tatiana. – Pare com isso – ela disse numa voz bondosa. –O médico não lhe disse que a deixasse em paz? Você é a doente? – Sim –sussurrou Tatiana, segurando a mão fria de Dasha. A enfermeira deu a Tatianatrês pílulas brancas, um pouco de água e um pedaço de pão preto. – Está molhadoem água açucarada – ela disse. – Obrigada – disse Tatiana arfando e respirandodolorosamente. A enfermeira colocou os braços nas costas de Tatiana. – Quer vircomigo? Vou tentar achar um lugar para você deitar antes do café da manhã.Tatiana balançou a cabeça. – Não dê a ela nada de pão. Coma você – disse aenfermeira. – Ela precisa mais do que eu – disse Tatiana. – Não, querida. – Aenfermeira respondeu. – Ela não precisa. Tão logo a enfermeira saiu, Tatianaesmagou os tabletes de sulfa na estrutura da cama, colocou as migalhas na mão edepois na água, tomou um pequeno gole, levantou ligeiramente a cabeça de Dashado travesseiro e a fez beber o remédio dissolvido. Tatiana partiu um pedaço dopão e deu a Dasha, que o engoliu com dor e engasgou. Aos borbotões pôs tudopara fora, cobrindo de sangue o lençol branco. Tatiana limpou a boca e o queixode Dasha e de novo respirou dentro da boca da irmã. – Tania? – Sim? – Isto émorrer? Assim sentimos a morte? – Não, Dasha – era tudo que Tatiana podiaresponder. Ela fixou o olhar nos olhos mudos de Tatiana, que piscavam. –Tania... querida, você é uma boa irmã – sussurrou Dasha. Tatiana continuavarespirando na boca de Dasha. Ela não podia ouvir a respiração penosa, difícilda irmã, só sua própria respiração. Tatiana sentiu nas costas o toque de umamão cálida, e uma voz por trás dela disse: – Venha. Você não vai acreditar noque eu tenho para você. É hora do café da manhã. Tenho kasha de trigosarraceno, pão e uma colher de chá de manteiga. Temos também chá com um poucode açúcar, e até mesmo um pouco de leite de verdade. Venha. Como é o seu nome?– Não posso deixar minha irmã – disse Tatiana. – Venha, minha querida. O meunome é Olga.Venha, o café da manhã não vai durar para sempre – a enfermeiradisse numa voz solidária. Tatiana sentiu braços que a levantavam. Ficou em pé,mas bastou olhar para Dasha e ela se afundou de novo no piso. A boca de Dashacontinuava aberta como Tatiana a havia deixado. Seus olhos também estavamabertos, olhando para o céu violeta, para além do pano da tenda, além deTatiana. Curvada e quebrada, Tatiana beijou e fechou os olhos de Dasha e fez osinal da cruz em sua testa. Levantou-se com dificuldade, pegou na mão de Olga esaiu. No refeitório contíguo, ela se sentou numa mesa e olhou no prato vazio.Olga trouxe-lhe um pouco de trigo sarraceno. Tatiana comeu metade da pequenatigela. Quando Olga lhe disse que comesse mais, Tatiana respondeu que nãopodia, pois estava guardando um pouco para Dasha, e desmaiou. Tatiana acordounuma cama. Olga veio e lhe ofereceu um pedaço de pão e um pouco de chá. Tatianarecusou. – Se não come, você vai morrer – disse Olga. – Eu não vou morrer –disse Tatiana muito fraca. – Dê o pão e o chá à minha irmã Dasha. – Sua irmãestá morta – disse Olga. – Não. – Venha comigo. Eu levo você a ela. Tatiana foicom Olga até um quarto de fundo, onde viu Dasha estendida no chão junto a trêsoutros corpos. Tatiana perguntou quem ia enterrá-los. Olga respondeu com umarisada: – Oh, menina, o que você está achando? Ninguém, claro. Você tomou osremédios que o médico lhe deu? Tatiana balançou a cabeça e disse: – Olga, podeme trazer um lençol? É para a minha irmã. Olga trouxe-lhe um lençol, um poucomais de remédio, uma xícara de chá preto com açúcar e pão com manteiga. Dessavez Tatiana tomou os remédios e comeu, sentada numa cadeira de metal baixa, numquarto cheio de cadáveres. Terminada a refeição, estendeu o lençol no chão erolou Dasha para dentro dele. Por um longo tempo Tatiana manteve nas mãos acabeça da irmã. Depois de enrolar Dasha no lençol bem apertado, arrancando asextremidades estragadas e amarrando as pontas boas, Tatiana saiu da tenda e foià procura de Dimitri. Em Kobona, pequena cidade praiana, na escuridão dejaneiro, Tatiana encontrou muitos soldados, mas não ele. Precisava encontrá-lo.Necessitava de sua ajuda. Ela voltou ao rio Kobona. Parou um oficial eperguntou-lhe onde poderia estar Dimitri Chernenko. Ele não sabia. Elaperguntou a dez soldados, nenhum deles sabia. O décimo primeiro olhou para elae disse: – Tania, que diabos acontece com você? Eu sou Dimitri. Ela não oreconhecera. Sem nenhuma emoção disse: – Oh, preciso de sua ajuda. – Você nãome reconhece, Tania? – Sim, claro – ela disse num tom neutro. – Venha comigo.Mancando, ele foi com ela, seu braço levemente sobre os ombros de Tatiana. –Você não vai me perguntar sobre a minha perna? – Daqui a pouco, tudo bem? –Tatiana disse, levando-o ao quarto e mostrando-lhe o corpo de Dasha enroladonum lençol e rodeado de cadáveres descobertos. – Você me ajuda a enterrarDasha? – ela perguntou, mal conseguindo falar. Dimitri respirou fundo. – Oh,Tania – ele disse, balançando a cabeça. Ela continuou: – Não posso levá-lacomigo, mas tampouco posso deixá-la aqui. – Tania – ele disse abrindo osbraços. Ela afastou-se dele. – Onde vamos enterrá-la? A terra está congelada.Uma escavadeira não poderia limpar toda essa sujeira. Tatiana continuou em pé eesperou. Pela luz do sol, por uma solução. – Os nazistas estão bombardeando aEstrada da Vida, sim? – Sim. – O gelo no lago se quebra, sim? – Sim. – O rostode Dimitri registrava o entendimento gradual. – Então, vamos embora. – Tania,eu não posso. – Sim, você pode. Se eu posso, você pode. – Você não entende! –Dima, você não entende. Eu não posso deixá-la jogada naquele quarto agora,posso? Eu não poderei deixá-la, e não poderei salvar a minha própria vida. –Tatiana aproximou-se e ficou na frente dele. – Me diga, Dimitri, quando eumorrer, você pelo menos saberá como costurar um saco para mim? Quando eumorrer, você vai me colocar naquele quarto em cima de outros corpos? O que vocêvai fazer comigo? – Oh, Tania – ele disse batendo o rifle no chão. – Por favor,me ajude. Ele suspirou e mal balançou a cabeça. – Eu não posso, olhe para mim.Fiquei no hospital quase três meses. Acabaram de me dar alta, e eles mecolocaram no grupo de Kobona e agora tenho que dar voltas durante horas. Meu pédói, e os alemães bombardeiam o lago o tempo todo, eu não vou para aquele lado.Se o tiroteio começa, eu não posso correr. – Você me consegue um trenó, então?Pode fazer isso por mim? – ela disse friamente, sentando-se ao lado de Dasha. –Tania! – Dimitri, é só um trenó. Com certeza você pode fazer isso, não pode?Ele voltou mais tarde com um trenó. Tatiana levantou-se do chão. – Obrigada.Pode ir embora – ela disse. – Por que você está fazendo isso? – Dimitri exclamou.– Ela está morta. Quem se importa agora? Não se preocupe mais com ela. Estaporra de guerra já não pode machucá-la. Tatiana levantou os olhos e disse: –Quem se importa? Eu me importo. Minha irmã não morreu sozinha. Eu ainda estouaqui. E não vou abandoná-la até que possa enterrá-la. – E depois o que você vaifazer? Você tampouco parece estar muito bem. Vai procurar os seus avós? Ondeestão agora? Kazan? Molotov? Você provavelmente não deveria ir, e sabe disso.Eu continuo ouvindo relatos de horror dos evacuados. – Eu não sei o que voufazer – ela acrescentou. – Não se preocupe comigo. Quando ele já ia embora, elao chamou: – Dimitri? Ele se virou. – Quando encontrar Alexander, conte a elesobre a minha irmã. Ele assentiu. – Claro, eu faço isso, Tanechka. Vou vê-lo napróxima semana. Eu lamento por não ter ajudado mais. Tatiana afastou-se bemdecidida. Depois que ele foi embora, ela pediu a Olga que a ajudasse a colocaro corpo de Dasha no trenó, depois o empurrou encosta abaixo e caminhou atrás dele.No rio Kobona ela tomou as rédeas e, debaixo do céu silencioso e cinzento,empurrou Dasha, enrolada num lençol branco do hospital, no lago Ladoga. Era ocomeço da tarde, quase escuro. Não havia aviões alemães pairando. Por volta deum quarto de quilômetro, Tatiana encontrou um buraco de água. Ela ficoucutucando o corpo de Dasha até que escorregasse para baixo do gelo. Tatianaajoelhou-se e colocou a mão no lençol branco. Dasha, você se lembra de quandoeu tinha cinco anos, e você doze? Quando me ensinava a mergulhar no lago Ilmen?Você me mostrou como nadar debaixo da água, dizendo que amava a sensação de tera água toda ao seu redor porque era tão cheia de paz. E depois você me ensinoua ficar debaixo da água mais tempo que Pasha, porque você dizia que as meninasdeviam sempre ganhar dos meninos. Bem, você vai nadar debaixo da água agora,Dasha Metanova. O rosto molhado de Tatiana estava virando gelo no vento doártico. – Eu gostaria de saber uma prece – ela sussurrou – Eu preciso de umaprece agora, mas não sei nenhuma. Querido Deus, por favor, deixe a minha únicairmã Dasha nadar em paz e nunca sentir frio outra vez, e por favor... deixe queela tenha todo o pão diário que possa comer, lá em cima no céu... De joelhos,Tatiana empurrou o corpo de Dasha para dentro do buraco de gelo. Na luz que seesvaía, o saco branco parecia azul. Dasha foi relutante, como se não quisessedeixar a vida, e então desapareceu. Tatiana continuava ajoelhada no gelo.Depois levantou-se e, tossindo nas luvas, lentamente empurrou o trenó vazio devolta à margem    

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora