Capítulo 22

62 5 0
                                    

  Luga fora queimada, Tolmachevo caíra, os soldados do general alemãoVon Leeb haviam cortado a linha ferroviária de Kingisepp-Catchina e,apesar dos esforços de centenas de milhares de voluntários cavandotrincheiras sob fogo de morteiro, nenhuma das linhas de frenteaguentaria muito tempo. As ordens eram para não entregar a ferrovia,mas a ferrovia foi entregue. E Tatiana continuava no hospital incapaz deandar, incapaz de segurar as muletas, incapaz de ficar em pé com a suatíbia quebrada, incapaz de fechar os olhos e não ver nada, só Alexander.Tatiana não conseguia livrar-se da dor interior. Não conseguia apagar achama íntima.Em meados de agosto, poucos dias antes de Tatiana voltar para casa,Deda e Babushka foram visitá-la para lhe contar que estavam deixandoLeningrado.Babushka disse:– Tanechka, somos muito velhos para ficar na cidade durante aguerra. Jamais sobreviveríamos aos bombardeios ou aos combates, ou aum cerco. Seu pai quer que deixemos a cidade e ele tem razão,precisamos ir embora. Estaremos melhor em Molotov. Seu avô foidesignado a um bom posto de professor e durante o verão ficaremosem...– E a Dasha? – Tatiana interrompeu esperançosa. – Ela vai comvocês, não?Deda disse que Dasha não deixaria Tatiana abandonada.Não é a mim que ela não pode abandonar, pensou Tatiana.Deda disse que quando Tatiana tirasse o gesso da perna, ela, Dasha etalvez a prima Marina iriam para Molotov.– Tirar você daqui agora fica muito difícil com uma perna quebrada –concluiu Deda.Sim, Tatiana pensou, sem Alexander para me carregar, fica difícilmesmo.– A Marina então fica em Leningrado também?– Sim – Deda respondeu. – Sua tia Rita está muito doente, e o tioBoris está em Ichorsk. Perguntamos se ela queria vir conosco, mas eladisse que não podia deixar a mãe no hospital e o pai, enquanto ele seprepara para combater os alemães.O pai de Marina, Boris Razin, era um engenheiro em Ichorsk, umafábrica bem parecida com a de Kirov, e enquanto os alemães dela seaproximavam, os trabalhadores, nos intervalos da fabricação de tanques eprojéteis de artilharia e lançadores de foguetes, se preparavam para abatalha.– A Marina devia ir com vocês – disse Tatiana. – Ela... – Tatianatentou pensar uma descrição leve. – Ela não reage bem sob pressão.– Nós sabemos – Deda disse. – Mas como sempre são os laços e elosde amor e família que impedem as pessoas de se salvarem a si próprias.Sorte a nossa, sua avó e eu somos os nossos próprios elos. Eu não diriasó elo, mas correntes. – Ele sorriu a Babushka.– Agora, lembre-se, Tanechka – disse Babushka acariciando ocobertor – Deda e eu amamos muito você. Você sabe disso, não sabe?– Claro, Babushka – disse Tatiana.– Quando você vier a Molotov, vou lhe apresentar a minha boa amiga,Dusa. Ela é velha, muito religiosa e vai logo aprumar você.– Ótimo – murmurou Tatiana com um sorriso cansado.Deda beijou-a na testa.– Dias difíceis virão para todos nós, particularmente para você, Tania.Você e Dasha. Agora que o Pasha não está aqui, seus pais precisam devocê mais do que nunca. Sua coragem será testada, assim como a detodos os demais. Haverá um único critério, o critério de sobrevivência aqualquer custo, cabendo a você dizer o preço dessa sobrevivência.Mantenha a cabeça no alto, e se você vai sucumbir, que seja sabendoque não comprometeu a sua alma de forma alguma.

 Babushka puxou o marido pelo braço.– Chega. Tania, faça o que for preciso para sobreviver e dane-se a sua alma. Esperamos ver você em Molotov o mês que vem.– Nunca comprometa o que o seu coração diz ser correto, minha neta – Deda disse levantando-se e abraçando-a. – Me ouviu?– Alto e claro, Deda – Tatiana disse abraçando-o também.Tarde da noite, quando Dasha veio com Alexander e Dimitri, Tatiana mencionou que Deda havia pedido às meninas que se juntassem a eles quando Tatiana tirasse o gesso em setembro. Alexander disse:– Isso não será possível, não haverá trens em setembro.Ele normalmente evitava dirigir-se a Tatiana, mantendo cuidadosa e silenciosa distância.Tatiana teria gostado de falar com ele, mas seus sentimentos continuavam numa agitação indômita, e ela não confiava no seu rosto para ocultar o tremor na voz ou a doçura nos olhos quando olhasse para ele. Como de costume, então, não disse nada, e não olhou para ele.Dimitri estava sentado ao seu lado.– O que significa isso? – Dasha falou.– Significa que não haverá trens. – Alexander repetiu – Havia trens em junho, quando vocês, meninas, poderiam ter ido embora, e havia trens em julho, mas Tatiana quebrou a perna. Em setembro, quando a sua perna estiver curada, não haverá um único trem saindo de Leningrado, a não ser que aconteça um milagre entre agora e o momento em que os alemães chegarem a Mga.– Que tipo de milagre? – perguntou Dasha esperançosa.– Rendição incondicional dos alemães – respondeu Alexander secamente. – Com a perda de Luga, nosso destino estava traçado. Comtoda certeza vamos tentar deter os alemães em Mga, ponto central de viagens ferroviárias para o resto da União Soviética. Na verdade, a ordem é que sob nenhuma circunstância entreguemos Mga aos alemães. É ilegal agora entregar ferrovias aos nazistas. – Alexander sorrriu. – Mas eu tenho uma estranha habilidade de ver o futuro, a lei será infringida, e não haverá trens em setembro.Tatiana ouviu a mensagem implícita na voz neutra de Alexander: Tania,eu lhe disse para sair desta maldita cidade, você não me ouviu, e agora com uma perna quebrada não pode ir a lugar algum.

   

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora