Prólogo

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As ondas massacravam o frágil casco da embarcação. Cada balanço mais forte que o outro, enjoando até mesmo os mais acostumados e resistentes marinheiros. Esses, ainda assim, estavam correndo de um lado ao outro do grande barco, ajustando velas, desembaraçando cordas, socorrendo os companheiros com problemas. Baldes e barris eram usados para tirar a água que continuava inundando o convés, cada onda enchendo o triplo do que tinha sido retirado. Alguns passageiros dobradores de água voluntariaram-se para tentar minimizar os estragos e perdas. O máximo que conseguiam fazer era impedir que o barco inundasse. As ondas eram grandes e fortes demais para a suas habilidades.

Um casal abraçava sua filhinha, chorando e dizendo que tudo ia ficar bem. A menininha parecia confusa apenas, sem compreender a reação dos pais e porque estavam na chuva. Ela não conseguia ver a tempestade por detrás dos corpos deles. Um velho mercador, que se recusou a descer ao deck inferior, simplesmente se segurava no que fosse mais resistente e admirava o céu. Era impossível saber se ele chorava, ou se eram apenas as gotas de chuva escorrendo pela sua face.

No deck inferior, a salvo do frio e da água, os outros passageiros pagantes espremiam-se, rezando para a divindade que fosse para que tudo aquilo passasse. Muitos diriam, são e salvos no porto da Cidade da República, que aquele dia fora amaldiçoado, e que aquilo era o início de uma nova era de caos. Outros simplesmente aproveitariam suas famílias, com uma nova visão de vida.

O capitão manuseava a embarcação do melhor jeito possível, sempre mirando a frente do barco no coração das ondas três vezes maiores do que sua pobre Katara. Se alguma onda acertasse a lateral, estariam todos perdidos. Em mais de 45 anos de vida marítima, ele nunca tinha visto uma tempestade daquelas. Nem mesmo o metal excelentemente moldado pelo Clã do Metal de Zaifu do que era feito o casco seria capaz de aguentar a força daquelas ondas por muito mais tempo.

Um homem ao mar era um homem morto.

Passageiros choravam e rezavam, pensando nas famílias ou nos sonhos. Marinheiros xingavam tudo e a todos, e julgavam-se amaldiçoados. O capitão fazia milagres no timão.

E uma figura encolhida no convés parecia indiferente.

Os marinheiros que passavam por ali correndo nem pareciam reparar na figura franzina coberta dos pés à cabeça com um cobertor encharcado. O ser praticamente se camuflava à paisagem noturna.

A cada onda aquela pessoa era encharcada sem piedade. Mas nem isso, nem o balanço, nem os gritos, nem a chance da morte pareciam abalar aquela figura. Ela apenas ficava ali, tremendo. Não lhe fazia diferença a morte, ou o frio, ou o mal-estar. Para ela, tanto fazia morrer ali afogada, ou chegar sã e salva ao porto.

Ninguém tentava ajudar. Era melhor assim, do contrário, era mais provável aquelas pessoas jogá-la ao mar do que ajudá-la. Por isso, se a tempestade quisesse engoli-la, que assim fosse. A Natureza era imparcial, sem preconceitos.

Ela afogava igualmente o marinheiro e a abominação.


A Lenda da Abominação - Livro Um: AmizadeOnde histórias criam vida. Descubra agora