Capítulo 18: Acorrentado (Parte 1)

16 1 4
                                    

A rotina do navio era simples.

Quatro pessoas se revezavam na guarda da cela, todos subordinados de Yikki. Pelo que Kuzou conseguira ouvir através das paredes, mais dois patrulhavam o mesmo deck e serviam de intermediários entre a comitiva que era responsável por escolta-los e os piratas. Eles eram alimentados duas vezes por dia por esses mesmos guardas, apenas o suficiente para não passarem fome. Nenhum deles lhes dirigiam a palavra. Kuzou sabia que era porque seus carcereiros os temiam. Eles tinham feito um belo de um estrago até serem capturados, afinal. Quando eles (achavam que) estavam fora da vista dos prisioneiros, no entanto, não sabiam ficar quietos. O ex-agente agradecia.

Porém, eles não eram os únicos que tinham dificuldade em não falar. Seus colegas não estavam acostumados àquele tipo de situação. Ficar em silêncio, privados de informação, principalmente por parte de Kuzou, estava levando-os à loucura.

— Sabe, quando eu disse que vocês tinham de tomar cuidado, eu não quis dizer que vocês tinham de ficar três dias sem falar — soltou o ex-agente, finalmente.

— Porra! — exclamou Yan. — Você não podia ter falado isso antes?

— Queria ver o quanto vocês aguentariam — riu Kuzou.

— Seu... — começou o nômade.

O que ele não iria dizer era que o silêncio tinha sido bem útil. Aumentava o pavor dos guardas e o permitia se concentrar nos arredores. Três dias de pura calmaria, sem cobranças e ataques também não tinha sido nada mal.

Os amigos pareceram relaxar, como se estivessem segurando a respiração aquele tempo todo. A situação deles não tinha melhorado, mas Kuzou preferiu deixá-los assim antes que acabassem asfixiados. Felizmente, nas horas que se seguiram, eles pareceram entender melhor o que podiam, ou não, fazer.

Não tivera o mesmo sucesso em formular um plano de fuga, contudo.

O seu maior problema, Kuro da Água Negra, não se dava o trabalho de vigiá-los e parecia não se entender nem com a comitiva de escolta, nem com os piratas, o que o mantinha afastado e isolado. Esses atributos pareciam estar além de seu contrato, mas Kuzou sabia que ele estava à postos em algum lugar do navio, caso uma nova oportunidade de trabalho viesse a aparecer. Uma palavra do comandante da comitiva e ele já estaria em cima deles novamente.

Esse mesmo comandante, por acaso, era o segundo problema. Ele só tinha descido ao convés deles uma vez desde que Kuzou voltara a consciência; e tão rápido quanto aparecera, já tinha ido embora, sem sequer chegar perto da cela. Todos os guardas se calavam quando ele aparecia, o nervosismo claro como o dia. Nenhum deles gostava do comandante, algo que eles deixaram bem aparente no bate-papo que se seguiu. O que eles não falaram, mas o ex-agente notou, foi que eles o temiam. Todos esses detalhes faziam dele uma incógnita perigosa.

Essas duas variáveis atrapalhavam qualquer tipo de planejamento de nível minimamente aceitável. Não tinham todo o tempo do mundo, entretanto. Notícia da captura da Abominação sem dúvida já teria chegado à terra firme, e o destino deles ainda era desconhecido. A qualquer momento reforços poderiam aparecer, e o ex-agente duvidava que a recepção ao aportarem seria mais fácil de lidar que a situação atual.

Não, teriam de agir logo, e seria tudo ou nada.

A quietude repentina dos guardas interrompeu seu raciocínio.

"Falando no diabo..."

Os passos do comandante ecoaram pelo deck silencioso.

Kuzou não pretendia deixar aquela chance passar. Pegou o parafuso que tinha tirado da algema que o acorrentava ao chão e o ajeitou entre os dedos. Mirou com cuidado entre as grades da porta, fazendo os cálculos em sua mente, enquanto esperava o momento certo. Quando percebeu que os passos não se aproximariam mais, ele atirou.

A Lenda da Abominação - Livro Um: AmizadeOnde histórias criam vida. Descubra agora