Os humanos não tem nenhuma.
A garotinha do cabelo espetado, muito menos.
Ela foi visitar meu humano irritante das letras faltando todos os dias no hospital.
Levava doces.
Presentes.
Cartõezinhos.
E uma culpa tão patética pelo que tinha acontecido que eu quase tinha vontade de arrastá-la dali a força e entregá-la de volta para o garoto moreno emburrado.
De bandeja.
E de preferência com uma maçã enfiada na boca.
Por que adivinha o que aconteceu com ele depois do pequeno acidente desastroso com o urso?
Exatamente.
Humanos não tem vergonha na cara e se orgulham disso.
Eles trocam de pessoas como quem troca de roupa e acham bonito.
Esquecem que infeccionaram as entranhas do outro com suas bactérias pútridas e depois os abandonam, partindo para a próxima vítima.
Algum comentário sobre isso?
Claro:
Desprezível.
Mas talvez assim se sintam especiais, porque eles têm essa necessidade gritante e doentia de serem o centro das atenções.
Veja, eles até inventam prêmios para dar a si mesmos.
O que pode ser mais deprimente que isso?
Ah, sim.
A garota do cabelo espetado.
Porque agora ela tinha trocado o garoto emburrado pelo meu humano irritante, e parecia estar achando aquilo imensamente divertido.
Ele também.
Eu, não.
- Foi um anjo que me salvou – ele disse quando seus lábios carnudos finalmente se desgrudaram dos dela, e só por aquilo eu não desci ali mesmo e puxei a alma dos dois.
Ou pelo menos era o que eu dizia ao verme agitado, que parecia cada vez maior.
Talvez ele estivesse se alimentando do meu coração, afinal.
Aquilo seria bom.
Assumindo, é claro, que existisse um ali.
Eu não sabia.
Nunca tinha tido a chance de descobrir.
Mas aquilo não fazia diferença.
- Você levou uma pancada na cabeça, Ian. – ela disse passando aqueles dedos finos e asquerosos pela pele pálida do humano, contornando os cabelos escuros e bagunçados. Meu verme mordeu alguma coisa dentro de mim, me obrigando a gritar. Mas eu não gritei. – Está confuso, imaginou coisas.
- Não imaginei! – meu humano irritante gritou tão alto que a faz pular na cama. Aquilo me fez sorrir, e eu escorri mais para baixo, mais para perto. – Eu a vi! Era uma mulher e... E ela era linda.
Oh.
Meu verme se remexeu, mas daquela vez ele não mordeu nada.
Ao invés disso, desceu correndo do meu coração e foi parar no meu estômago, fazendo malabarismo e me obrigando a contorcer os lábios em um quase sorriso.
Quase.
- Ela estendeu os braços para o urso. – ele continuou com os olhos azuis vidrados no nada, imitando o movimento que descrevia de uma forma vergonhosa. – E quando puxou, ele morreu.
Oh.
Então aquele humano inútil e insuportavelmente frágil tinha mesmo me visto.
Mesmo.
Mesmo.
Aproximei-me mais.
Aquilo não era prudente, eu sabia que não.
Mas já tinha quebrado as regras, de qualquer forma.
Quebrar mais uma não faria diferença.
Faria?
Eu achei que não.
Esperei que o humano irritante fechasse os olhos e me posicionei ao lado da porta.
Aquilo era divertido, eu conseguia arrancar alguns gritos quando estava entediada.
Normalmente os últimos.
Mas não dele.
Ah, não.
Como eu disse, humanos tem o péssimo hábito de serem imprevisíveis.
Ele me olhou.
Seus olhos azuis se arregalaram como se tivessem inchado até dobrar de tamanho.
O queixo forte caiu, deixando aquela boca estúpida e convidativa aberta.
E então ele sorriu.
- Anjo...
E eu desapareci.
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O homem que me chamava de anjo [FINALIZADA]
ParanormalEu poderia dizer que essa é uma história com um final feliz. Uma história de amor, talvez, e então você se importaria em lê-la. Mas não. E não, simplesmente porque eu não estou aqui para te agradar, e sim para reunir o que sobra da minha memória fra...