Capítulo dezessete, sobre vergonha na cara

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Os humanos não tem nenhuma.

A garotinha do cabelo espetado, muito menos.


Ela foi visitar meu humano irritante das letras faltando todos os dias no hospital.

Levava doces.

Presentes.

Cartõezinhos.


E uma culpa tão patética pelo que tinha acontecido que eu quase tinha vontade de arrastá-la dali a força e entregá-la de volta para o garoto moreno emburrado.

De bandeja.

E de preferência com uma maçã enfiada na boca.


Por que adivinha o que aconteceu com ele depois do pequeno acidente desastroso com o urso?

Exatamente.


Humanos não tem vergonha na cara e se orgulham disso.

Eles trocam de pessoas como quem troca de roupa e acham bonito.

Esquecem que infeccionaram as entranhas do outro com suas bactérias pútridas e depois os abandonam, partindo para a próxima vítima.

Algum comentário sobre isso?

Claro:

Desprezível.


Mas talvez assim se sintam especiais, porque eles têm essa necessidade gritante e doentia de serem o centro das atenções.

Veja, eles até inventam prêmios para dar a si mesmos.

O que pode ser mais deprimente que isso?


Ah, sim.

A garota do cabelo espetado.


Porque agora ela tinha trocado o garoto emburrado pelo meu humano irritante, e parecia estar achando aquilo imensamente divertido.

Ele também.

Eu, não.


- Foi um anjo que me salvou – ele disse quando seus lábios carnudos finalmente se desgrudaram dos dela, e só por aquilo eu não desci ali mesmo e puxei a alma dos dois.

Ou pelo menos era o que eu dizia ao verme agitado, que parecia cada vez maior.

Talvez ele estivesse se alimentando do meu coração, afinal.

Aquilo seria bom.

Assumindo, é claro, que existisse um ali.


Eu não sabia.

Nunca tinha tido a chance de descobrir.


Mas aquilo não fazia diferença.


- Você levou uma pancada na cabeça, Ian. – ela disse passando aqueles dedos finos e asquerosos pela pele pálida do humano, contornando os cabelos escuros e bagunçados. Meu verme mordeu alguma coisa dentro de mim, me obrigando a gritar. Mas eu não gritei. – Está confuso, imaginou coisas.

- Não imaginei! – meu humano irritante gritou tão alto que a faz pular na cama. Aquilo me fez sorrir, e eu escorri mais para baixo, mais para perto. – Eu a vi! Era uma mulher e... E ela era linda.


Oh.


Meu verme se remexeu, mas daquela vez ele não mordeu nada.

Ao invés disso, desceu correndo do meu coração e foi parar no meu estômago, fazendo malabarismo e me obrigando a contorcer os lábios em um quase sorriso.

Quase.


- Ela estendeu os braços para o urso. – ele continuou com os olhos azuis vidrados no nada, imitando o movimento que descrevia de uma forma vergonhosa. – E quando puxou, ele morreu.


Oh.


Então aquele humano inútil e insuportavelmente frágil tinha mesmo me visto.

Mesmo.

Mesmo.


Aproximei-me mais.

Aquilo não era prudente, eu sabia que não.

Mas já tinha quebrado as regras, de qualquer forma.


Quebrar mais uma não faria diferença.

Faria?


Eu achei que não.


Esperei que o humano irritante fechasse os olhos e me posicionei ao lado da porta.

Aquilo era divertido, eu conseguia arrancar alguns gritos quando estava entediada.

Normalmente os últimos.


Mas não dele.

Ah, não.


Como eu disse, humanos tem o péssimo hábito de serem imprevisíveis.


Ele me olhou.

Seus olhos azuis se arregalaram como se tivessem inchado até dobrar de tamanho.


O queixo forte caiu, deixando aquela boca estúpida e convidativa aberta.


E então ele sorriu.


- Anjo...


E eu desapareci.

O homem que me chamava de anjo [FINALIZADA]Onde histórias criam vida. Descubra agora