Capítulo seis, sobre sentido

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Os humanos não fazem nenhum.

Principalmente o irritante do cabelo cacheado.

Lembra-se do que eu disse sobre pessoas que parecem inocentes?

É.

Já fazia umas duas semanas desde que ele havia se cimentado no grupinho e todos pareciam gostar dele por algum motivo mágico que eu não conseguia entender.

Ele era irritante.

No jeito que sorria, no jeito que andava, no modo como as palavras deixavam seus lábios cheios em um tom grave para se depositarem em um sussurro no ouvido imediatamente ao seu lado.

Ouvido que – eu sabia – a baixinha do cabelo espetado daria de tudo para que fosse o dela.

Só que não era.

O tal Ian havia se mostrado especialmente atencioso em relação ao sexo feminino e parecia fazer questão de explicitar essa atenção com uma representante da espécie por dia – ou quase isso.

Alguma consideração? Ah, é.

Desprezível.

Ainda assim, uma fila inteira parecia disposta a se arrastar aos pés dele, prontas para se enroscarem animalescamente em seus músculos, provavelmente em busca de uma noite que fosse

Se elas efetivamente aconteciam?

Não faço a menor idéia.

Eu costumava voltar para o lugar parecido com o céu assim que as feições da menina com cara de criança ficavam presas em algum lugar entre a raiva, o nojo, o ciúme e a vontade de agarrar o humano das covinhas, sem se ater em nenhuma delas, exatamente.

Humana idiota, sofrendo por um humano que não merecia.

Deve ser consenso da espécie fazer esse tipo de coisa.

Outra consideração:

Exatamente o que você está pensando.

E naquele dia foi o que eu fiz.

Voltei ao andar lá de cima, disposta a me poupar do desfecho desnecessário daquela noite repulsiva.

No entanto, eu estava enganada, como descobriria mais tarde.

Uma nota para se lembrar:

Imprevisibilidade nem sempre é uma coisa ruim.

Existem exceções.

-Onde você estava, McQueen? – a voz de alfinetes enferrujados de Jason gritou afiada em meus ouvidos enquanto eu desfilava com uma alma cansada em meus braços.

Eu a levantei para ele.

-Caçando borboletas. O que parece, seu idiota?

Ele cruzou os braços e ficou me observando andar, espreitando como se o velho que eu carregava fosse algum tipo de pegadinha.

A frase seguinte veio em tom de provocação.

-Você tem demorado ultimamente...

-Por acaso o Gregory te contratou como cronômetro? Vá cuidar da sua vida, seu imprestável.

Eu já havia dado as costas para ele quando a frase seguinte cortou meus ouvidos enquanto eu visualizava o sorriso repugnante em seus lábios finos.

-É por causa do seu humano de estimação, não é?

Eu parei e Jason percebeu minha hesitação. Era a deixa para que ele continuasse.

-Pensa que eu não percebi, Rose? Pensa que eu não sei que você passa horas sentada naquele canto medindo cada movimento que o seu Ianzinho faz? – senti o sangue subir, o filho da mãe estava pedindo para ficar sem os dentes. – Por que você não está lá agora? Está com ciuminho porque ele está se divertindo?

Joguei a alma do velho na entrada da ala dos acidentados e me virei para Jason.

Se ele estivesse perto, teria levado um soco. Como não estava, fiz exatamente o que um humano típico faria em uma situação como aquela.

-Eu o odeio, Walbrick. Não vejo a hora de carregar a alma dele em meus braços, pessoalmente.

Jason sorriu com desdém e eu tive a certeza de que ele não acreditou em mim.

Talvez nem eu mesma tivesse acreditado.

 -Então você não terá problemas em ver como ele está realmente se divertindo.

Eu sabia que aquilo era uma provocação.

Um desafio.

Decidida, eu me aproximei dele e espiei lá embaixo.

Antes eu não tivesse o feito.

O humano irritante estava enroscado de tal forma em uma mulher de cabelos castanhos que mal dava para saber onde terminava um e começava o outro. As mãos deles subiam e desciam em um ritmo frenético, como se houvesse alguma lei que as proibissem de permanecerem paradas.

Meu primeiro impulso foi o de me virar e ir embora.

O segundo, de ficar e mostrar ao Jason que ele era um idiota.

Escolhi a segunda opção.

E foi bem a tempo de ver a menina do cabelo espetado roubar a cena.

A expressão no rosto dela era de repulsa e depois de ódio.

Em seguida, alguma coisa que eu avaliei como decisão repentina. No segundo 

seguinte, ela estava com os dedos apertados nos cabelos do moreno emburrado, arrancando-lhe quase à faca um beijo inesperado.

Foi como um interruptor sendo acionado.

O humano irritante parou.

Suas mãos travaram, seus movimentos já não correspondiam aos da mulher que tentava persuadi-lo a continuar.

Não aconteceu.

Dei de ombros para Jason, indiferente. Outra ação tipicamente humana em resposta à frustração.

-São apenas humanos idiotas. Não fazem sentido. – cuspi.

E parei por ali.

O homem que me chamava de anjo [FINALIZADA]Onde histórias criam vida. Descubra agora