Eles estavam viajando há algumas horas, haviam sido parados uma vez por quatro vigilantes das estradas mas a Grande Ama apenas disse a eles que tinha negócios em Tahrl e que Kenner e Wilh eram os seus guardas, e eles não a questionaram.
Já haviam chegado ao Estreito de Megnis, uma comprida faixa de terra que ligava a ilha de Garmeth com a ilha de Taurolen e Kenner sabia que a tranquilidade não duraria, pois agora já estavam entrando na divisa entre Garmeth e Tahrl, e o perigo de Garmeth não era nada comparado aos perigos que espreitavam nas selvagens terras de Tahrl, o reino humano em Taurolen.
Havia uma fortaleza no centro do estreito de Megnis que havia sido inaugurada há cerca de 14 anos, depois que o rei Ragnis assumiu Tahrl, como símbolo da aliança entre Tahrl e Garmeth. A fortaleza se chamava Uno, e era guarnecida, metade por homens de Garmeth e metade por homens de Tahrl, o que muitas vezes dava brigas. Porém a Grande Ama decidiu que não passariam por lá, já que Kenner e Wilh estavam sendo perseguidos como traidores nos dois reinos, e mesmo com os disfarces era melhor não arriscar. Aparentemente a Grande Ama era quem decidia tudo por ali. Passaram por algumas florestas ao leste, para evitar Uno, e o grupo acampou entre as árvores sombrias da floresta chamada Thudsa.
- Thudsa significa "espectro" em gorgolin (a língua dos gorgols). - Disse Wilh, com um calafrio. - Dizem que os espíritos das crianças que morreram na guerra entre humanos e gorgols vagueiam por aí, além de outros espectros sombrios que se alimentam da alma de pessoas.
- Sabia que esses espectros gostam de peixes? - Perguntou a Grande Ama, de brincadeira, fazendo Wilh arrepiar, mas então ficou séria. - Temos de ficar atentos, aqui é a fronteira entre dois mundos diferentes, praticamente, e a magia aqui é forte.
Kenner não colocava muita fé naquilo.
- Que negócios você tem em Kharnel? - Perguntou, desviando de assunto.
- Eu não cultuo somente Linvar. Sou serva de todos os deuses, mas Linvar é minha patrona. Haverá uma grande reunião dos sacerdotes em Kharnel, e eu preciso ir. E você, jovem?
- Estou indo cumprir um juramento. - Falou Kenner, fingindo não ser tão importante.
- A quem, filho de Jarne?
Kenner olhou para ela, realmente assustado.
- Mas como...
- Seus olhos. - Falou ela simplesmente. - Jarne é o único que conheci que tinha olhos vermelhos.
- Conheceu Jarne?
- Sim. Ele era o rei de Tahrl. - Disse ela, como se eu não soubesse. Tentei ver sua expressão por detrás do turbante, mas só conseguia ver seus olhos castanhos, espertos e indecifráveis, porém com um tom de diversão.
- Veja, não é tão simples assim tomar o trono de Tahrl, garoto. - Falou ela. - Te abriguei pois reconheci seu nome. Me lembro de quando a criança chamada Kenner, filho de Jarne, nasceu, pois eu estava lá em seu parto, e sou uma das únicas que sabe de sua existência, mas você está perto de arruinar um segredo protegido há quatorze anos com esse desejo maluco de possuir o trono! Petal não te ensinou nada?
- Petal? - Perguntou Kenner, ignorando as ofensas. - Conhece Petal?
- Lógico. - Respondeu ela. - Foi ele quem te levou depois da morte de Jarne, e cuidou de você. Lorde Petal era um bom homem.
Kenner pensou durante um tempo, depois falou:
- Está frio, vou buscar lenha para uma fogueira senão vamos morrer congelados.
- Mas cuidado. - Disse a Grande Ama, sombrio. - Cuidado com os espectros à noite.
Wilh se ofereceu para ir com ele, mas Kenner recusou, queria ficar sozinho. Ele foi andando para longe, com um machado que a Grande Ama trouxera em uma mochila com vários itens úteis para a viagem ou itens bizarros de sacerdotes.
Ele começou a cortar lenha, e a cada vez que cravava o machado na madeira ficava com mais raiva naquela noite sombria. Por que Petal nunca havia lhe falado nada? Por que todos tinham que morrer? Petal, Ranval, Rayhla, seus amigos, em breve Wilh, provavelmente, e depois o próprio Kenner. Kenner sentiu um vazio no coração, seu corpo parecia gelado. Foi quando ele percebeu que havia de fato uma mão gelada encostada em seu ombro. Ele se virou, assustado, e se deparou com o rosto de Ranval, e por um segundo maravilhoso ele pensou que seu companheiro estivesse vivo. Mas quando ele se moveu a mão atravessou sua pele, fazendo ele se sentir ainda mais gelado, ele percebeu que não passava de um espectro.
O espectro de Ranval o rodeou, lentamente.
- Você me deixou morrer. Eu morri por sua culpa. Se você não tivesse sido egoísta e tentado se vingar eu ainda estaria vivo...
- Não. - Falou Kenner, tentando tirar a voz da cabeça.
Em seguida vieram espectros de todos seus amigos mortos, Kenner se lembrava como ontem deles, vieram Nihla, Uchen, Max, Lair, e vários outros, todos sussurrando:
- Vocês nos abandonou. Morremos por que você era o filho de Jarne.
E por mais que fossem apenas espectros, Kenner sabia que o que diziam era verdade. Se não fosse ele, todos eles ainda estariam vivos. Por fim, veio os que o deixaram mais devastados, os espectros de Petal e Rayhla.
- Você é fraco. - Disse Petal, duramente. - Você nunca aprendeu nada, não vai conseguir cumprir o juramento. Se você tivesse se movido ao invés de ficar paralisado quando eu morri eu ainda estaria vivo.
- E eu. - Disse Rayhla. - Eu sempre cuidei de você, e para nada. Estava criando um inútil, um fracassado.
As palavras atingiam duramente Kenner, e a cada palavra era como um golpe, e ele ficava cada vez mais atordoado, agora já estava caído de joelhos no chão, e os espíritos o rodeavam, ainda aplicando-lhe golpes. Parecia que sua consciência havia se tornado uma bigorna, e o peso o esmagava cada vez mais, e quanto mais ele cedia, seu ânimo, auto-estima, humor, bondade, estava tudo se esvaindo, os espectros estavam extraindo todas as coisas boas de sua alma. Foi quando uma voz gritou:
- Afastem-se, criaturas de Nekron! - Gritou a Grande Ama, apontando um frasco que continha um líquido brilhante para os espectros, e eles pareciam temer o frasco, e estavam se afastando de Kenner. Então a Grande Ama gritou para eles se afastarem de novo com mais ênfase, e Kenner só viu a luz do frasco, e enquanto estava dormindo também só viu a luz.
Mais tarde Kenner descobriu que o líquido brilhante no frasco, que havia afastado os espectros, segundo a Grande Ama era uma dose de "boa vontade" e ele havia sonhado com a luz por causa dos efeitos do líquido mágico. Kenner só foi acordar no dia seguinte.
- Ele acordou! - Disse Wilh de repente, e agora ainda havia luz nos olhos de Kenner, porém era a simpática luz do Sol. Já era dia, e Kenner parecia ter passado um tempo dormindo, e ainda se sentia sonolento.
- Eu avisei. - Foi a primeira coisa que a Grande Ama falou a Kenner. Não um consolo, ou um "bom dia", mas um "eu avisei". Era típico dela. - Nessa floresta vivem espectros do remorso. Eles atacam nossa boa vontade, e no final só resta sentimentos ruins, todos dominados pelo remorso, pela culpa de algo.
- Mas os espíritos estavam certos, sobre o que disseram... - Disse Kenner, triste.
- Espíritos não, seu idiota! - Falou ela. - Espectros. Espíritos são as almas das pessoas em si, espectros são seres malignos que já nasceram assim, e muitas vezes eles se passam por espíritos para fazer a pessoa sentir remorso, como aconteceu com você. Mas eles não estavam certos, estavam apenas tentando te fazer pensar isso, para destruírem sua alma.
- Então toda essa coisa de espectros - Ele se certificou com cuidado de falar isso, e não "espíritos". - é real. - Concluiu Kenner, que antes duvidava das lendas sobre espíritos e espectros.
- Você é muito observador. - Falou ela ironicamente. - Como conseguiu perceber?
- Você é muito grossa. - Retrucou Kenner.
- Eu só falo o que penso, eu sou livre. E você deveria ser também. Agora, vamos, precisamos ser rápidos se não quisermos ter mais surpresas inesperadas pelo caminho! Mexam seus traseiros inúteis e se arrumem, Tahrl está próxima.
E de fato a fronteira de Tahrl estava apenas a um quilômetro de onde eles estavam, então Kenner ajeitou suas coisas e eles voltaram a viajar.
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O Mercenário
Adventure" - Jure, meu filho... Jure, que você se tornará o rei de Tarhl. " Kenner é um jovem mercenário que vive nas Ilhas de Lothien, um lugar selvagem onde várias raças disputam pelo controle absoluto de todos os reinos. Em meio ao caos e à guerra, Kenner...