Cap 4

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"O desconhecido pode te olhar nos olhos e ver além do que te ama. Muito as vezes, o que ama te olha tanto, que não te vê."

Entrei em casa e encontrei meu pai caído no sofá. Bêbado. Agradeci mentalmente por isso. Já que ele estava inconsciente.
Olhei ao redor e procurei minha mãe. Ela devia estar no quarto.
Me arrastando, fui até lá e a encontrei deitada na cama chorando.
Me sentei do seu lado e comecei a acariciar seus cabelos.
- você está ferida?
Eu sempre cuidava dos seus machucados. Ela sempre ficava com as piores marcas.
- não. Foi só um tapa na cara. O problema é que ele tinha prometido que não beberia hoje. Eu tinha feito o jantar e esperado ele.
- mãe, ele sempre promete isso. Você não percebe que não vai acontecer?
Ela não respondeu porque sabia a verdade e tentava se enganar todos os dias.
- você precisa de alguma coisa?
- não Nic, é melhor você ir pro seu quarto, quando ele acordar, vai vir para a cama e não vai gostar de te ver aqui.
Ele não ia gostar, ele não ficaria feliz, ele, ele, ele! Era sempre ele. Ela não percebeu que eu cheguei tarde, que tive problemas, que estava machucada e ferida por dentro. Ela nunca percebia. Era sempre ele.
Sai e fechei a porta. Eu teria que enfrentar tudo sozinha, sem saber se estava preparada para isso.
Me alimentei, tomei um banho, me deitei e cai no sono, exausta.
Quando o despertador tocou, a primeira coisa que me lembrei foi do pé. A dor era horrível e quando olhei, estava inchado. Droga! Eu tinha que ir trabalhar e caminhando.
Olhei em cima da cômoda e vi o cartão do senhor poderoso. Na hora nem lembrei de olhar seu nome.

Kauã Markes
Delegado de polícia

Atrás, o telefone celular e o e-mail se destacavam ao lado do brasão da polícia.
Guardei na bolsa, por precaução e me troquei correndo. Eu demoraria o dobro para chegar no trabalho.
Graças a Deus todo mundo ainda estava dormindo e não precisei ver a cara do meu pai.
Assim que coloquei o pé na rua e comecei a caminhar, percebi que não seria fácil. Eu dava um passo com a perna boa e arrastava a outra com a ajuda das mãos. Se eu colocasse o peso do meu corpo no pé machucado, eu gritaria de dor. Como uma simples luxação poderia me fazer sofrer tanto?
Olhei para o relógio e calculei que chegaria atrasada no trabalho. Eu nunca me atrasava, então eles me perdoariam. Eu esperava que sim.
Um carro parou ao meu lado. Eu o reconheci no mesmo instante. Qual era o problema desse cara?
Ele abaixou o vidro. Fingi que não o vi e continuei andando.
- Nicolle, entra no carro.
Ele adorava me dar ordens e o engraçado nisso tudo, é que ele me conhecia fazia um dia.
Ignorei.
- se você não entrar nesse carro, eu vou descer, te algemar e te levar a força. Você não vai querer dificultar a minha vida, vai?
Parei e olhei perplexa.
- você não faria isso. Eu te mato se o fizer.
- que inferno, garota!
Irritado, ele desceu do carro e veio ao meu encontro. Dei alguns passos para trás e ele respirando fundo, se aproximou.
- vamos explicar algumas aqui. Eu não aceito ser contrariado e você tem feito isso o tempo todo.
Franzi a testa.
- deixa eu te explicar algumas coisas também . Você não manda em mim, não me conhece, não é meu parente, você não é nada meu- berrei- eu estou tentando entender o que você está fazendo atras de mim.
- olha o seu pé- ele apontou- como pode ser tão irresponsável e desobedecer às ordens médicas?
Sua voz era suave dessa vez e eu enxerguei preocupação por traz dos seus olhos. Um cuidado que ninguém tinha por mim.
Só lembrando, ele era um estranho e tinha me prendido no dia anterior!
- eu não posso perder um dia de trabalho. Vão me mandar embora  e se eu não trabalhar, não tenho nem como comer.- desabafei.
Meu pai já tinha me dito isso várias vezes, "não sou obrigado a sustentar vagabundas", ele repetia sempre.
- então aceite minha carona. Até você melhorar.
Ele me encarou com uma seriedade incomum, esperando a minha resposta.
Abri um sorriso e acabei aceitando. Decidi baixar a guarda.
Ele abriu a porta e me ajudou a entrar. Depois ocupou seu lugar e perguntou antes de sair:
- onde você trabalha?
- na MJW. Você conhece?
- conheço. E isso, é bem longe daqui.
Ele fechou a cara e não falou mais comigo. Eu podia jurar que ele era bipolar. Nem o som ele ligou.
Espiei algumas vêzes, só para me lembrar dele. Nada demais.
Reparei que a camisa branca ficava com os botões quase explodindo no peito. Ele com certeza malhava mais que o normal. Qual era o meu problema? Estava paquerando o cara, sendo que ele era um troglodita.
- Nicolle, você sai para almoçar?- ele perguntou quebrando o silêncio.
- não. Hoje eu saio uma hora mais cedo, então não faço horário de almoço.
Ele freiou bruscamente e encostou o carro.
- como assim, você não almoça?
Ele balançou a cabeça, parecendo inconformado.
- eu não tenho essa obsessão por comida como você. Às vezes, eu não faço hora de almoço e consigo ganhar um extra, ou uma folga.
Hoje, no caso, eu pretendia sair mais cedo e tentar agendar a consulta com o médico especialista. Ele não precisava saber disso.
- eu nunca conheci alguém tão irresponsável com a saúde como você. Você ao menos tomou café da manhã?
Agora ele parecia à beira de um colapso nervoso.
- sim.
Desviei o olhar para que ele não visse a mentia estampada em meus olhos. Eu era péssima com mentiras.
- o que você comeu no café da manhã, Nicolle?
- eu....eu comi.....pão! É o que todo mundo come no café da manhã. Pão!
Uhrrr!!! Como eu poderia ter gaguejado. Droga.
- você não comeu. Sabe o que vou fazer com você? Vou te levar em um restaurante depois do trabalho e vou abrir sua boca e te fazer comer a força. Que horas você sai do trabalho?
- as seis.- menti.
Eu ia ao medico e não queria ele perto de mim.
- as seis hora vou estar na porta do seu trabalho te esperando.
Sem mais nenhuma palavra, ele saiu acelerando de novo e só parou na porta da fábrica.
Abri a porta e desci. Me debrucei sobre o vidro aberto e fiquei olhando sua cada mal humorada. Que ficava linda por sinal. Será que ele ficava feio de algum jeito? Nicolle idiota!
- posso te fazer uma pergunta?
Observei o queixo dele estremecer de raiva e ele engolir seco. Por fim me olhou. Mas não me respondeu.
- porque está se preocupando tanto comigo?- perguntei mesmo assim.- e não venha me dizer que é por senso de justiça que eu não vou acreditar.
- eu não sei. Simplesmente não sei. Vamos fazer o seguinte.- ele se abaixou e pegou a carteira- vou te dar dinheiro para pagar o táxi até você melhorar e não precisamos nos vermos mais. Vai ser melhor. Nada de te buscar às seis.
Ele me estendeu algumas notas de cem reais.
Eu estava chocada e tão magoada que demorei para ter alguma reação. Então me virei e sai, sem olhar para trás.
Ele tinha me oferecido pretenção, se preocupado comigo e depois trocado tudo por algumas notas de cem reais. Mais uma vez, o mundo me mostrava que eu não tinha valor.
Realmente, morrer não me parecia tão ruim.

Por um amor como dos livros (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora