"Quando um simples olhar pode curar tudo e quando o toque de carinho chega até as feridas da alma, se descobre que o amor chegou. Ele está bem próximo."
Trabalhei sem entusiasmo. O dia pareceu ter trinta horas. Não fiz horário de almoço e sai uma hora mais cedo. Meu pé estava visivelmente melhor, mas andar ainda era difícil.
Peguei um circular e fui até o endereço do médico que fui encaminhada. Eu tinha sorte que a empresa pagava plano de saúde. Isso facilitaria muito a minha vida.
Cheguei no consultório e apresentei o encaminhamento para a recepcionista.
Ela leu e mandei que se atentasse ao fato do médico ter pedido urgência.
- eu sinto muito senhorita, mas consultas só para daqui quinze dias.
- eu não posso esperar quinze dias. O médico pediu urgência.
- eu não posso fazer nada, me desculpe.
- e se for particular?- perguntei inconformada.
- particular, conseguimos te encaixar ainda hoje, tivemos uma desistência de última hora. A consulta é 450,00 reais.
Sim, o mundo estava conspirando contra mim.
Eu não tinha esse dinheiro.
Sem outra alternativa, deixei marcado para daqui quinze dias.
Assim que cheguei em casa, minha mãe enfim percebeu que eu mancava.
- Nick, o que houve?
- nada de mais mãe. Torci o pé.
Ela me olhou desconfiada, mas por fim decidiu acreditar. Ela era expert em aceitar falsas verdades. Era mais fácil.
- coloquei seu prato de comida no microondas. Eu e seu pai já jantamos. É só você esquentar.
Deixei minhas coisas no quarto e fui esquentar o jantar. Sentei na mesa e fiquei brincando com a comida, sem fome. Comi o suficiente para não desmaiar e senti uma dor de cabeça começar a me atormentar.
Tomei um analgésico e decidi me deitar assim que terminei de tomar banho.
Adormeci sonhando com uma parede de músculos que vinha me atormentado a mente.
Acordei com gritos vindos da sala e olhei no relógio assustada. Eram duas da manhã. Meu pai tinha bebido.
- eu não tenho dinheiro pra nada e tenho que sustentar essa garota- meu pai gritava.
A garota em questão, era eu. Nos últimos anos ele queria que minha mãe me colocasse para fora de casa. Segundo ele, eu dava gastos excessivos.
O problema é que eu dava todo o meu salário em casa, não me lembrava da última vez que tinha comprado roupa ou qualquer coisa que tinha vontade e nunca, nunca saia. Ele achava que não era o suficiente.
Nas suas contas, o que eu consumia e o aluguel, que ele colocava na minha conta, era gastos abusivos.
Porque eu continuava ali? Simples!
Eu não tinha condições de pagar um aluguel e me sustentar sozinha. Não tinha nenhum parente que conhecia e meu pai e minha mãe, era tudo que eu tinha.
Realmente, eu tinha bem pouco.
Coloquei o travesseiro no ouvido e tentei ignorar.
Quando os gritos da minha mãe se tornaram insuportáveis e por fim se cessaram, eu sai do quarto.
Ela estava caída no sofá, chorando baixinho. Ele estava do lado, pronto para dar mais um soco.
- não faça isso!- falei com ódio.
- ah você está aí sua vagabunda. Quando vai entender que você é culpada por isso.
- no mesmo dia que ver você pagando por toda a maldade que comete com ela. No mesmo dia que te ver apanhando e sentindo na pele a dor e humilhação que nos faz passar.
Eu tremia de raiva e estava pouco me importando com a minha vida.
- então vou te ensinar a me respeitar.
Veio o primeiro soco, na minha boca.
Gemi de dor e continuei encarando ele.
- covarde!- gritei.
Um chute na minha perna machucada me fez cair no chão.
Com um sorriso no rosto, ele saiu cambaleando.
Ele era meu pai. E eu o odiava mais que todas as pessoas do mundo.
Busquei a bolsa de gelo e cuidei da minha mãe.
Quando voltei para a cama, já era três e meia da manhã. As cinco meia eu tinha que levantar.
Quando o despertador tocou, parecia que um trem tinha me atropelado.
Olhei no espelho do banheiro e me assustei com a cor do meu rosto. Era uma mistura de roxo com verde perto da boca e um lado estava maior que o outro.
Não consegui calçar meu tênis. Minha perna estava um pouco mais inchada depois do chute. Coloquei uma rasteirinha e respirei aliviada por conseguir andar com ela.
Decidi pagar o ônibus para ir o trabalho e voltaria a pé. Até a tarde, provavelmente eu estaria me sentindo melhor.
Eu tinha que andar só três quarteirões até o ponto de ônibus e tudo ficaria bem.
Um misto de sentimentos apertava meu peito por tudo que vinha acontecendo na minha vida. Mas quando abri a porta de casa e vi o sol nascendo, resolvi sorrir. Eu estava viva ainda e isso era um bom motivo pra sorrir.
O sorriso sumiu no mesmo instante que vi uma carro muito conhecido parado na frente da minha casa e um homem lindo de morrer, vestindo uma camisa branca que constratava com seus cabelos negros, me olhando com a testa enrugada.
Eu ia ignora-lo, mas já sabia que ele me perseguiria. Então, melhor resolver logo.
Me aproximei e a cara dele ficou ainda pior. Eu devia estar com a aparência péssima.
- você sempre enruga a testa assim? Sabia que isso causa rugas precoces?
- eu devo ter envelhecido uns dez anos em dois dias então. Me parece que você consegue fazer isso comigo, o tempo todo!- Seu olhar era tão profundo, que eu não me dei ao luxo de piscar- me parece que sou incapaz de ficar longe de você. E me parece, que você se machuca muito longe de mim.
Ele deu um passo e ficou muito próximo a mim. O polegar dele traçou uma linha no meu maxilar e por fim, fechei os olhos.
Era algo tão simples. Um toque no meu rosto. Porém tinha um efeito tão avassalador, que parecia que ele tocava meu coração.
- o que aconteceu com você Nicolle?
Abaixei o olhar. Eu não diria a verdade. E eu era péssima com mentiras, né!
- eu cai. Na minha tentativa de se rastejar pela casa, tropecei e bati o rosto na cabeceira da cama.
Ele pegou meu rosto nas suas mãos e levantou meu olhar a altura dos seus, que estavam de um verde mais intenso.
- eu não gosto que você se machuque. Pode compreender isso?
Assenti e antes que conseguisse concluir qualquer raciocínio lógico, ele me abraçou. Encostou meu rosto no seu peito e me protegeu com as mãos.
E ali estava eu, abraçando um estranho e me sentindo como se pela primeira vez na vida pertencesse a algum lugar. Eu me sentia protegida pela primeira vez na vida.
Eu não conseguia deixar de confessar.
- eu preciso de você então. Parece que me machucar, tem sido meu robe preferido.
-vem- ele pegou na minha mão e me colocou dentro do carro.
Eu parecia uma criança, rindo feito boba e indo passear pela primeira vez na vida. Eu estava realmente feliz.
- coloque o cinto- ele pediu quando deu partida- vou te deixar no serviço e te buscar a tarde. Então vamos jantar e conversar.
- vamos conversar sobre o que?- perguntei, gostando da ideia.
- sobre você, Nicolle.
- e sobre você também?- rebati.
Eu queria saber tudo. Porque ele estava ali, porque queria cuidar de mim. Quem era ele?
- não. Vamos falar sobre você- ele afirmou, sem deixar espaço para argumentos.
- e o que você mais gostaria de saber sobre mim hoje, Kauã ?- perguntei olhando pra ele.
- o que te faz feliz. Eu preciso saber o que te faz sorrir.
Com um nó na garganta, não respondi. Sai do carro e bati a porta.
- eu saio às seis horas- falei pelo vidro.
Me recusei a responder. Mas eu sabia a resposta, sem pensar. O que me faria feliz hoje, seria ver o seu sorriso.
E eu soube, nesse instante, que tinha algo errado!