Cap 2

684 77 8
                                    

"Se olhar no aparente você pode encontrar as suas verdades, suas falsas verdades. Mas se olhar no que está escondido por camadas da vida, você vai encontrar a essência e conhecer seres humanos incríveis."

Cap 2

Já na delegacia, fui empurrada como uma assassina até uma sala. Ninguém se preocupou em perguntar meu nome ou me explicar o que estava acontecendo. Eu estava sendo acusada de roubar alguma coisa. Isso eu tinha entendido.
O que eu não compreendia era como isso tinha passado pela cabeça de alguém. Eu tinha saído do médico a meia hora. O que roubei nesse percurso? Eu também não tinha nada nas mãos, a não ser a sacola macabra com o coco e os meus exames. Isso era tudo.
- deixa que eu cuido da meliante- escutei alguém falar nas minhas costas.
Não me dei ao trabalho de olhar quem era, mas o odiei no mesmo instante. Eu era inteligente o suficiente para saber que meliante significa vagabunda, malandra e que não demonstra ter vergonha.
Vamos começar por vagabunda. Eu saia de casa às seis da manhã, andava duas horas a pé e chegava no trabalho às oito. Trabalhava em uma fábrica de bancos de carros e motos e passava o dia todo fechada dentro de um galpão, lidando com todo tipo de cola, produtos químicos e maquinários perigosos. Saia as sete, às vezes oito hora da noite e me dava ao luxo de voltar para casa de ônibus.
Malandra! Geralmente o malandro é aquele que leva a vida fazendo tudo por diversão e prazer, sem se preocupar com os meios. Eu não me lembrava da última vez que tinha sorrido até chorar ou que tinha feito alguma coisa para o meu prazer.
Pessoa que não demonstra vergonha! Bom, essa definitivamente essa não era eu. Eu quase tinha que tomar banho de roupa, de tanta vergonha que eu tinha, até de mim mesma.
- eu não tenho o dia todo para perder com pessoas como você. Então se cooperar e responder rápido, eu posso ir pra casa e almoçar em paz, sem ter que tomar outros meios indelicados para descobrirmos a verdade .
Voltei ao mundo real e vi que alguém me encarava e me fazia perguntas. Um homens, de uns trinta anos e que deveria ser o delegado, me olhava irritado. E ele era a fonte do meu ódio. Ele que tinha me chamado de meliante.
- eu não escutei o que você perguntou. Me desculpe, mas pode repetir a pergunta?
Eu estava tentando ser educada para não piorar as coisas. Mas a frase que rondava a minha mente era bem diferente. "Filho da puta, babaca, vá se f......"!
Ele deu um soco na mesa e todas as canetas e papéis pularam, juntamente comigo.
- cadê seus documentos?- ele perguntou. Na verdade ele gritou e ordenou.
Pisquei assustada. Eu começava na verdade a ficar apavorada. Eu não tinha nenhum documento comigo. Simples assim.
- eu não estou com nenhum documento. Ficou todos em casa.
Ele me encarou com dois olhos furiosos. Olhos verdes por sinal. Muito bonitos, só para constar.
- ou você os perdeu, correndo, depois de praticar o furto?
- antes de continuarmos essa conversa, você poderia me dizer o que estou sendo acusada de roubar?- perguntei bem furiosa.
Ele não gostou do meu tom de voz pelo visto, já que sua testa enrugou feito aquela cachorros bem fofinhos que parecem pregueados. Mas ele não parecia fofinho. Estava mais para pitbull.
- não estamos em uma mesa de bar batendo um papo. Então eu pergunto e você se limita a responder. Estamos entendidos?
Balancei a cabeça, concordando.
- eu fiz uma pergunta, pode responder.
- sim!
- como eu estou num ótimo dia e de bom humor, vou sugerir que você pegue o celular e ligue para alguém trazer seus documentos. URGENTE!
Olhei pra cima, como se do céus pudesse vir algum socorro, depois para baixo envergonhada e por fim o encarei. Ele acompanhava meus movimentos com o maxilar trincado.
- eu não tenho celular.
Eu já tinha comprado dois, mas meu pai sempre quebrava em alguma briga. Desisti de comprar outro.
- você deve estar achando que isso aqui é um circo e eu sou o palhaço.- ele abaixou na mesa e falou com olhar sombrio.
- não tive tempo de roubar um.- falei tentando descontrair. Ele não sorriu.
- só porque eu estou em um excelente dia, como já disse, pode utilizar o da delegacia.
Ele me empurrou o aparelho e o peguei tremendo. Se ele estava um excelente dia, eu não queria conhecê-lo no péssimo.
Disquei o número de casa e minha mãe atendeu depois de uns cinco toques.
- mãe, estou com um probleminha aqui. Será que você pode pegar meus documentos e arranjar alguém para trazer pra mim em um endereço que vou te passar?
- olha nick, não sei em que rolo você se meteu- e nem vai quente saber, claro- mas seu pai não está em casa- foi beber, claro- e não tenho carro e nem carta, você sabe disso. Os vizinhos também não conversam com a gente.
Sim! Os vizinhos tinham medo do meu pai!
- certo mãe. Vou tentar ver o que faço. Se eu não voltar para casa hoje, não se preocupe, estou bem.
Ótima na verdade. Com câncer, faltando um pedaço do pé, presa, acusada de roubo e nesse momento, assinando a sentença de morte.
- não tem ninguém que pode trazer meus documentos. Me desculpe.
Ele me olhou por um longo momento.
- vamos fazer o seguinte. Vou te colocar em uma cela e você fica lá. Vou almoçar, porque estou morrendo de fome e quando eu voltar, vamos ter uma conversa mais séria.
E sem se importar com mais nada, ele saiu e me jogaram em uma cela, sozinha.
Aproveitei a cama fétida e horrorosa e me sentei. Sem rumo, sem perspectiva de vida e totalmente sem liberdade.
E esperei. Me lamentando pela perda de tempo. Nesse exato momento eu já poderia ter conhecido o meu amor como dos livros. A chance era bem pequena. Mas presa aqui, ela era nula.
Nas próximas horas, me deixei sofrer pelo dedo, que estava horroroso, pela fome que sentia, apesar de andar sem apetite, hoje especialmente, eu sentia meu estômago roncar.
Como por castigo, fui deixada o resto do dia naquele lugar e só quando percebi por uma janela minúscula, que o sol estava indo embora, fui levada novamente para a sala.
O senhor poderoso estava sentado no seu trono encantado e me aguardava com seu jeito prepotente. Ele preenchia toda a cadeira gigante e me deixei observar como ele era forte. Muito forte e muito bonito. Droga!
- vamos continuar senhorita.
Me jogaram na cadeira. Nesse movimento, meu pé se torceu e eu gemi de dor, quando meu dedo recém decepado entrou em contato com o chão. Olhei para baixo e vi que a tampa estava solta novamente e o sangue escorria pelo chão. Eu não morreria de hemorragia, mas a dor era terrível.
- precisa de ajuda dr. Markes?- o imbecil que me empurrou, perguntou.
- não, pode ir- ele falou secamente.
Definitivamente, ele não era legal.
- qual o seu nome completo garota?
- Nicolle, com dos l, da Silva.
Ele digitou no computador e debruçou sobre a mesa.
- porque roubou aquelas roupas?
- eu não roubei nada. Não sei nem porque estou aqui.
- deixa eu te refrescar a memória. Recebemos um chamado, de uma loja ali no calçadão da orla da praia. Eles receberam uma cliente, que descrevem ser exatamente como você- ele pegou um papel na mesa atras da sua cadeira - 1,70 mais ou menos de altura, olhos verdes claros, morena, cabelos negros presos em um rabo de cavalo, vestindo um calça jeans e uma regata preta.
Ele colocou o papel sobre a mesa e me olhou. De cima em baixo.
- isso me lembra você Nicolle!
- sim. Eu sou bem normal. Minha mãe sempre disse isso.
- vamos juntar a isso, o fato de que a sacola da loja é exatamente igual a que você estava segurando no flagrante.
- só que na sacola da loja eles devem colocar roupas e na minha, você como o bom delegado que precisa ser, deve ter reparado que tinha um coco. Vazio. Sem água dentro.
Eu me exaltei um pouco pra falar isso e senti um arrepio com o olhar que ele me lançou. Não estava nada bom.
- eu não sou um bom delegado. Eu sou o melhor. Se isso te serve de consolo, eu nunca deixo alguém impune.
- se isso for verdade, você vai ser processado por calúnia e difamação, já que eu não roubei nada e estava simplesmente saindo do médico e parei tomar uma água de coco. Isso é crime agora?
Eu já estava bem exaltada.
- eu sugiro que você baixe o tom de voz comigo, ou te deixo mofando em uma cadeia qualquer.
- se você fizer isso, eu juro que te mato. Eu não posso perder nem um minuto da minha vida. Será que você compreende isso?
Eu estava a ponto de bater nele!
Ele se levantou e eu soube que estava ferrada. Se aproximou da minha cadeira, abaixou e olhou bem no fundo dos meus olhos. Acho que ele fez um exame completo na minha vista. Se perguntasse, ele deveria saber até meu grau de miopia.
- sua vida não tem valor nenhum aqui e eu estou pouco me lixando se você vai perder um dia ou 10 anos aqui. Eu vou ligar no médico que você disse ter ido e confirmar seu álibi. Se isso for mentira, é melhor você falar antes que eu pegue o telefone nas mãos. Eu não vou facilitar a sua vida. Fique sabendo disso.
Balancei a cabeça e não me atrevia a falar mais nada.
Ele deu a volta na mesa e pegou o telefone.
- qual o nome do médico?
- tem o telefone marcado nos envelopes dos exames que estavam comigo.
Ele pegou-os sobre a mesa e conferiu. Discou o número e aguardei.
Só faltava agora, o médico não se lembrar de mim. Seria meu fim.
O telefone era sem fio e ele saiu da sala para que eu não escutasse a conversa.
Depois de alguns minutos retornou.
Sossegadamente se sentou na cadeira, cruzou as pernas e por fim me olhou.
- o médico confirmou sua história. O horário do roubo bate com o do médico. Você está livre.
Simples assim. Sem arrependimentos, sem pedidos de desculpa e sem flores. Idiota!
- pode se levantar e sair.
Olhei para o relógio na parede e já eram quase nove horas da noite. Eu estava muito, muito longe de casa, sem dinheiro e com a dignidade jogada dentro de um saco de lixo. Estava tudo perfeito. O mundo me amava.
Me levantei e senti uma dor terrível no pé. Olhei para baixo e vi que já estava inchado. Além do dedão decepado, eu tinha torcido o tornozelo. Beleza! Eu teria que caminhar umas três horas, tranquilo.
- você pode me devolver os exames?
- sim, claro. São seus.
Ele estendeu os dois envelopes.
- o saco com o coco foi jogado fora.- ele completou.
- sem problemas. Eu vou sobreviver sem meu coco- falei ironicamente.
Me virei e sai mancando.
Já na porta da delegacia, respirei fundo e implorei para que nada mais me acontecesse. Ou então, eu teria mesmo que pular da ponte.

Por um amor como dos livros (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora