Cap 1

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"Eu queria que tantas coisas dessem certo. Sonhava com um mundo onde todas as coisas se encaixassem. Então comecei a colocar amor em tudo e por fim.....encontrei sentido até na dor."

Nicolle

2016

Respirei fundo, me apoiei na parede para não desmaiar e apertei os lábios. Eu não ia chorar. Chorar reduz o ser humano a uma condição infeliz. Todas as suas fraquezas expostas, seus medos escancarados e sua dor dando um show gratuito para uma plateia que sempre olhava com pena.
- você está bem, querida?- uma senhora que passava na rua perguntou.
- sim. É apenas o calor- respondi sem nem olhar.
Ela ficou mais alguns instantes do meu lado e depois desistiu, saindo sem dizer tchau.
Eu estava com câncer! Eu estava com leucemia. Eu estava com os dias contados e eu......
Nem o pensamento conseguia completar, tamanho meu desespero. Eu tenho só 21 anos. Eu não tenho namorado, eu não tenho filhos e tudo que eu tenho é uma família ferrada.
Eu tenho várias opções em mente.
Chorar era a que meu corpo mais pedia. Estava fora de cogitação!
Eu poderia me jogar da próxima ponte. Seria um morte mais rápida e talvez eu pouparia meus pais de um trabalho maior. Mas eu não faria isso. Não ainda.
Eu poderia sair gritando, berrando para o mundo e encontrar uma amiga que me desse o ombro para descansar. Eu escutaria que tudo ficaria bem e que era passageiro. Eu não aceitaria esse discurso também. Porque não seria real.
Ou eu poderia aproveitar os últimos "dias, meses ou anos?", quem sabe, e buscar aquilo que anotei em uma lista a muito tempo.
O meu amor como dos livros. Sem medo de errar, de ser feliz ou infeliz, sem nada a temer, afinal, o próximo dia poderá não existir e meu fim poderá ser esquecido facilmente.
Era isso que eu faria!
Eu encontraria a minha luz e depois deixaria ela brilhando aqui no mundo e partiria.
Morrer deve ser terrível, mas morrer com um sorriso no rosto pode ser melhor do que só morrer.
Tudo bem que eu só tinha 16 anos quando fiz aquela lista, mas os sonhos não têm idade e nem validade. Apesar dos meus estarem com a validade bem próxima do vencimento.
Antes de ir para casa e explicar para minha mãe o porque tinha saído mais cedo do trabalho, decidi andar sem rumo e tentar me acalmar.
Ninguém sabia que eu estava doente. Eu tinha tido perda de apetite e de peso nos últimos meses, sempre indisposta e como estava ficando sem animo de sair para o trabalho, resolvi procurar um médico e pedir umas vitaminas. Ele pediu alguns exames e ali estava eu, saindo do consultório com um encaminhamento para um especialista, um tal de doutor Melier, oncologista.
Minha casa ficava a meia hora de onde estava, se eu estivesse de carro, a pé, demoraria horas. Era isso que eu faria. Iria a pé.
Comecei minha caminhada a passos de tartarugas e andei como se meu corpo fosse um fardo. Na verdade, hoje, ele era. Um fardo pesado que eu tinha que carregar sozinha por um tempo determinado.
O medico tinha sido o mais sincero possível " Nicolle, eu não sou especialista, mas creio que já está bem avançado pelos seus sintomas e alguns meses é tudo que você tem".
- alguns meses de tratamento?-perguntei sem entender. Eu sempre fui um pouco lenta.
- não. Alguns meses de vida.
Dentre todas as reações que eu poderia ter no momento, eu sorri. Não, eu não estava feliz! Eu sorri porque não soube fazer outra coisa e ele me olhou com pena.
Andei alguns quarteirões e quando tudo não poderia ficar pior, tropecei em um buraco no asfalto e como estava de rasteirinha, levei de brinde a tampa do dedão arrancada. A última vez que fiz isso, eu tinha cinco anos.
Gemi, xinguei e amaldiçoei todos os fabricantes de sapatos e políticos existentes no mundo.
Me abaixei e levantei a tampa, colando ela novamente sobre o sangue que escorria.
Respirei fundo de novo e continuei minha caminhada sobre o sol escaldante em pleno verão do Rio de Janeiro.
Conferi e vi que tinha dez reais no bolso. Desviei um pouco do meu percurso, até chegar na avenida da orla da praia e parei comprar um coco. Tomei a água, em pé mesmo, ignorando meu dedo que doía pra cacete, e depois pedi que o dono da barraca colocasse o coco vazio em uma sacola.
Eu adorava chegar em casa, corta-lo e comer com uma colher a castanha ainda mole.
Depois de escutar mil desculpas por ele não ter uma sacola descente, ele acabou colocando  dentro de uma ecobag preta com uma caveira desenhada. Bem sinistro. Completando meu lindo dia.
Continuei minha caminhada rumo para casa, com uma sentença de morte nas mãos, um caveira desenhada na sacola e o pé sangrando.
Definitivamente o mundo me amava e conspirava ao meu favor!
O que aconteceu em seguida, não teve lógica e eu fiquei sem entender, quando alguns policiais se aproximaram e um colocou a algema em meu braço.
- você está presa por furto.
Nada mais foi dito. Eu fui jogada atrás de um carro de polícia e levada para a delegacia.
E mesmo assim não me permiti chorar!

Por um amor como dos livros (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora