Prólogo - A Força

793 36 18
                                    

Objetivo e impessoal, o espelho devolve com fria eficiência nossa exata imagem. Ao espelho não importam ornamentos e retoques. Nem justificativas ou pretextos. Ele nada esconde: reflete cada sombra e seu desconforto.

______________________________________


Toronto, julho


Na alameda que serpeava entre elmos sonolentos, as luzes de uma dúzia de lares vazavam alegremente para a noite gelada. Exceto naquela casa. Esboçando apenas uma débil claridade, sua fachada de tijolos enegrecidos relutava em se expor e retraía-se atrás de uma massa de pinheiros desgrenhados. O telhado pontudo emoldurava uma janela no primeiro andar que vigiava a rua como um olho sinistro.

— É aqui.

— Não dá para ver o número.

Só pode ser essa casa.

De pé na calçada, Marisa e Valentina hesitaram diante do caminho com cicatrizes de rachaduras no cimento que cortava a grama alta. Avançaram, incertas, e tocaram a campainha. Os minutos se arrastaram. Um punhado de folhas vacilantes farfalhou com uma lufada de vento e rodopiou pelo chão. Depois a rua mergulhou no silêncio.

Valentina abraçou o próprio corpo, estremecendo.

— Não tem ninguém aí. Vamos embora, Ma. A cigana deve ter esquecido a sua consulta.

Ela fez menção de se afastar. Marisa agarrou-lhe o braço.

— Madame Lefèvre confirmou o horário, Val. Vamos tentar mais uma vez.

Marisa pressionou a campainha, produzindo um toque insistente enquanto a amiga falava às suas costas:

— Só você para me arrastar até este fim de mundo na minha primeira noite em Toronto. Por que a cisma com a cartomante? Você nem acredita nessas coisas.

— Não tenho nada a perder.

— A probabilidade da cartomante acertar ou errar é de cinquenta por cento. Então para que serve a leitura? Você mesma pode prever o futuro com cinquenta por cento de chance de acertar.

— Madame Lefèvre foi recomendada por uma garota do meu curso de inglês. Tudo o que ela previu para minha colega se concretizou.

— Será que não foi um caso de autossugestão? Se eu disser que você vai tropeçar, inconscientemente você se programa para tropeçar ou então se esforça tanto para evitar isso que vai acabar tropeçando.

— Autossugestão não causa pane em avião nem pouso forçado. — Marisa virou-se para Valentina, e uma sombra passou por seu semblante. — Você não entende. Eu preciso saber.

— Saber o quê?

Marisa baixou o rosto. Sua resposta se resumiu a uma palavra.

— Marco.

Valentina franziu o cenho.

— O que aconteceu?

O ruído nervoso do trinco cortou a quietude da noite. A porta se entreabriu e o rosto pálido de uma mulher despontou na fresta. Seus olhos, negros como a noite lá fora, perscrutaram com desconfiança Marisa e Valentina. Intimidadas, as duas se atropelaram ao explicar que estavam ali para a consulta. Madame Lefèvre fez sinal para que entrassem e fechou a porta depressa.

Tinha idade indefinida e a constituição imponente de um obelisco. Mechas negras escapavam de seu coque, descendo até o colo branco onde faiscava um volumoso pingente dourado. O longo que ela trajava, escuro e decotado, evidenciava um par de braços ossudos por baixo das mangas compridas. Um anel de rubi cor de sangue adornava-lhe a mão habituada a ler destinos.

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora