37. Presa e predador

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Marisa teve dificuldade em conciliar a persona aventureira de Robert com o perfil patológico delineado por Eliana. Veio-lhe de novo a sensação de que ele era um quebra-cabeça incompleto — ou, quem sabe, o quebra-cabeça foi finalizado na véspera quando ele lhe escancarou o coração?

— Robert não corresponde a essa descrição — contestou Marisa. — E se fosse como você diz, por que permitiu que ele a manipulasse durante todos esses anos? Em muitos casos, ser vítima é uma questão de escolha.

— Não é tão simples assim. O narcisista coloca você em um pedestal alto demais. A queda é excruciante, exaure suas forças e sua lucidez. Depois você é restaurada ao pedestal, é derrubada outra vez, e o ciclo continua até você ficar em permanente estado de confusão e desespero. Quando o abuso está em curso, você já não consegue enxergá-lo pelo que é.

Mesmo solidarizando-se com Eliana, Marisa não concordava com sua teoria. Marco tinha razão: ela estava transtornada.

— Eu não considero Robert um homem arrogante nem egoísta. Todo mundo tem uma dose de narcisismo, que é saudável para o amor-próprio. E Robert conseguiu neutralizar seu egotismo dedicando-se a causas sociais. Até atravessou a cidade para confortar você quando perdeu seu amigo. Um homem autocentrado não age assim.

— Ele não faz isso pelos outros. É inteligente e camufla suas motivações. A aparente despretensão serve para cativar e a falsa modéstia, para arrancar elogios. Mostra-se prestativo e generoso porque convém à imagem que inventou para si mesmo.

Robert só confortou Eliana para reforçar a ilusão dela e sua própria ilusão de grandiosidade. Não a amava. Precisava dela, o que era bem diferente. Precisava dela como troféu, para não sentir abandono e solidão, para alimentar o ego porque era incapaz de sentir-se bem sem uma plateia. Eliana correspondia ao ideal feminino que satisfazia à autoimagem de Robert. Tanto poderia ser ela ou qualquer outra que preenchesse os requisitos — não faria a menor diferença.

— Robert me disse que eu sou a mulher que sempre quis, Eliana. Até se dispôs a mudar para o Brasil comigo.

— Mentiras. Disse isso para atrair você. Mesmo que a paixão de Robert seja genuína, a única coisa que realmente lhe interessa é o que você tem a oferecer. O que ele precisa. Não esqueça que é um predador e você, a presa perfeita.

— Eu? Por quê? — Marisa inquiriu com súbito mal-estar.

Ao reavaliar a situação por aquele ângulo, percebia que Robert havia fechado o cerco desde o primeiro dia. Infiltrou-se em seu sono e invadiu seus devaneios. Agora queria cruzar a última fronteira.

— Você é jovem e vulnerável, Marisa. Perfeita para idolatrá-lo. Se não se submeter aos desejos de Robert, ele vai admirá-la por isso e odiá-la porque você tem a força interior que lhe falta. Aí vai fazer de tudo para arrasá-la, e quando estiver caída aos pés dele, Robert a desprezará. E então, quando você não lhe servir mais, se afastará como se você nunca tivesse existido.

Eliana demorou-se refletindo. Correu as mãos na cabeça com ar compenetrado, ajeitando os cabelos e os pensamentos.

— Eu devia ter desconfiado das intenções dele, mas estava confusa demais para reparar. Robert é expansivo com todo mundo e não estranhei como tratava você.

— Foi ele quem me derrubou na piscina no primeiro dia do cruzeiro. Tinha-se embriagado e tentou me beijar. Depois pediu que eu não contasse nada a ninguém porque se envergonhava de seu comportamento. As sandálias que Robert me deu foram um pedido de desculpas. Encontrei um cartão dentro da caixa.

Seguiu-se o silêncio à medida que a surpresa aflorava no rosto de Eliana.

— Um cartão?

— Uma mensagem. Só que não era um pedido de desculpas. Era algo mais. Não vou negar que me afetou. Joguei o cartão fora e não disse nada a Marco. — Marisa mordeu o lábio e admitiu a contragosto: — No fundo, fiquei lisonjeada. Ao mesmo tempo, me senti mal por causa de Marco.

— Não se censure. Eu sei exatamente o que você se sentiu. — Eliana suspirou. — Robert é cativante e persuasivo. Ele mapeia as pessoas. Sempre me espantou a facilidade com que capta a essência de alguém que acabou de conhecer. Deve ter detectado a turbulência no seu relacionamento com Marco e se aproveitou da situação. O fato de você ser comprometida aumentava o valor da conquista. Foi assim comigo.

De novo, Marisa reviveu aquele segundo que havia mudado tudo. O desalento de um segundo. Um segundo que teria bastado para ela se afastar e aceitar as flores de Marco.

— Ele se declarou para mim na ilha. Ontem à noite me prometeu tudo o que eu mais queria. Tudo o que eu já tinha sem saber — murmurou, os ombros curvados.

— Robert estava preparando o terreno para se separar de mim. Não suportaria a humilhação de ser rejeitado: tinha de me descartar antes que eu o descartasse. Eu me tornei inconveniente, Marisa. Parei de fazer as vontades dele e ameacei abandoná-lo. Isso é imperdoável para um narcisista. Agora percebo que Robert se fez de arrependido e insistiu em viajar comigo para ganhar tempo até achar uma substituta. Na realidade só desejava punir minha insolência. Assim que reconquistasse a minha confiança, me trocaria por outra. Tenho pena de Robert. Ele não escolheu ser assim.

Eliana deixara o cibercafé atordoada. Pouco depois de seu retorno à cabine, Robert chegou do Opal Lounge. Ela se trancou no banheiro porque não conseguia encará-lo. Seu estado era de choque. Sentia-se massacrada e ludibriada. Infinitamente triste. Queria desabafar todas as acusações presas dentro dela, agredi-lo, cuspir-lhe na cara o quanto ele a havia ferido, o quanto o detestava, o quanto o desprezava.

O quanto ainda o amava.

Mas não era amor o que sentia. Ao menos, não era amor por aquele homem. Seu sentimento se aferrava a uma quimera. A realidade era violação da pior espécie, da espécie que deixava cicatrizes profundas e invisíveis. Eliana abriu a porta do banheiro e anunciou que quando voltassem a San Diego daria entrada no divórcio.

Ele protestou — vislumbrava a verdade naquelas palavras, mas não quis acreditar e se recompôs. Ela lhe disse que convinha se aprontarem para o baile. Vestiram sua máscara de civilidade, puseram a fantasia e saíram.

Marisa segurou a mão de Eliana.

— Como você se sente?

— Despedaçada. Aliviada por não ter mais medo de cair da corda bamba.

E então ela chorou.

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora