4. Antes da meia-noite

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No quarto de hotel vazio, Marisa também se perdia em reminiscências. Não de sua primeira semana mas de seu primeiro ano em Toronto. Em dezembro, Marco e ela viajaram ao Brasil para passar o Natal com a família em São Paulo e celebrar o Ano-Novo no litoral em Paraty. Foi na véspera do Ano-Novo que Marisa teve um pressentimento: Esta é minha última noite com Marco.

O pensamento brotou quando ela disse três palavras que ele não ouviu. Distraído, Marco erguia os olhos para o céu, onde os fogos de artifício desenhavam efêmeras galáxias enquanto hordas de pessoas vestidas de branco passeavam pela praia. Umas soltavam fogos em comemoração antecipada, outras pulavam sete ondas ou atiravam rosas na água para Iemanjá.

Dentro de um par de horas seria Ano-Novo. Marisa sentiu uma mão invisível lhe esmigalhando todos os ossos. Por dentro, desmoronava. O voo de retorno a Toronto estava marcado para a noite seguinte — mas agora aquele pensamento a assombrava e ela já não sabia se embarcaria com Marco.

Marisa admirou o perfil dele banhado em reflexos dançarinos, ora flores de fogo desabrochando, ora uma chuva de estrelas sibilantes. Ao mirar o céu, Marco exibia aquela expressão de menino que ela conhecia tão bem e havia aprendido a amar. A pele bronzeada, acentuada pela camiseta e pela bermuda brancas, evidenciava a ascendência italiana e libanesa em suas feições. Uma mecha escura escorregou para sua testa, e Marisa ajeitou-a num impulso como já fizera tantas vezes.

Marco sorriu e lhe ofereceu o copo que segurava. Esperou que ela bebesse, terminou o champanhe de um gole e largou o copo ao lado da mochila a seus pés. Colhendo Marisa nos braços, alçou-a num rodopio, a saia branca do vestido flutuando no clarão da noite. Quando sua boca buscou a dela, ainda guardava o gosto efervescente do champanhe.

Marisa fechou os olhos. O ar cheirava a fumaça, sal e perfume, e ao redor a multidão de vozes se misturava ao rumor das ondas. Um bando de crianças passou correndo e quase os atropelou, fantasminhas céleres que deixavam para trás o eco de cicios e gargalhadas. Marco depositou Marisa na areia fina, rindo. Seu riso trespassou-a como uma lâmina.

— Vamos para o cais? — Ela desvencilhou-se. — Geraldo já deve estar esperando.

Durante um passeio de lancha pela baía aquela tarde, Marco decidira alugar um barco para comemorar o Ano-Novo longe da aglomeração. O piloto, um caiçara chamado Geraldo, com efeito os aguardava postado ao lado de uma lancha de vinte e dois pés com o nome Brisa pintado no flanco prateado. Minutos depois, Marco e Marisa sentavam no deque sobre a cabine com as pernas balançando no ar e o vento nos cabelos enquanto o motor rugia escuridão adentro. A cidade de Paraty com seu casario colonial foi se apagando atrás deles. Adiante, a linha entre o céu e o mar esvanecia sob a meia-lua pálida e um véu de estrelas.

Contemplando as ilhas que surgiam à direita e à esquerda, Marisa ruminava as três palavras que dissera na praia. As três palavras que Marco não tinha ouvido.

Senti falta disso.

Elas se abateram com a fúria de um temporal sobre seu jardim bem-cuidado. Admitir o quanto sentia falta do Brasil implicava admitir o que vinha negando há meses: não queria mais morar no Canadá. E, no entanto, era lá que Marco tinha construído sua vida. Para ela, o Canadá não era seu lar e nunca seria. O Brasil era seu lar. Durante aquelas férias, ela se sentiu viva de novo. Agora a partida iminente a enchia de morte.

Sua morte fora sorrateira. Acumulou-se em seu âmago aos poucos com pequenos grãos, partículas de poeira, cacos, farpas, crescendo numa mixórdia impossível de deslindar. Um dia Marisa acordou para se dar conta de que vivia a vida de Marco, não a sua. Tinha a impressão de desaparecer dia a dia, perdendo substância e rareando, uma sombra informe à meia-luz. Questionava: qual era a sua razão de ser, para que servia, o que desejava além da relação com Marco? Afinal, quem era ela? Às vezes, ao se olhar no espelho, temia não encontrar seu próprio reflexo.

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora