39. Jura

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Marisa recolhia e amontoava aleatoriamente roupas, cosméticos e calçados dentro da mala. Ainda tremia depois da visita de Robert, e suas mãos se moviam destacadas do corpo, sem sentir os objetos que ela transferia de lá para cá. Não conseguia banir da mente a imagem de Robert parado à sua porta. A inquietude dele era patente e sua expressão, torturada. Marisa mantivera-se rígida segurando a maçaneta sem convidá-lo a entrar. Robert perguntou-lhe o que havia decidido. Chamou-a de Mari.

Ouvi-lo dizer seu apelido, aquele que só Marco usava, abalou a convicção dela. A voz de Robert transmitia uma ternura que a envolveu no sortilégio das promessas feitas na véspera, e por um instante foi como se a conversa com Eliana nunca tivesse ocorrido. A seguir veio-lhe à mente a imagem do vampiro, aquele que necessitava de um convite para cruzar a soleira antes de clamar sua vítima. Marisa forçou-se a voltar à realidade. Repetiu a Robert as palavras de Eliana.

Retraindo-se qual um animal ferido, ele protestou:

— Não acredito que ela disse isso. Você sabe quem foi que recebeu o diagnóstico de narcisismo patológico? Eliana. Eu não mencionei nada porque queria poupá-la. Ela é desequilibrada, Mari.

Dessa vez ele proferiu o apelido dela com grande intimidade, sugerindo que o pacto dos dois já estava inexoravelmente em curso e não admitia interferências. Marisa retrocedeu, hesitante, e Robert entrou na cabine. Permaneceram de pé junto à porta, ele com o olhar inflamado, ela assustada com a violência de suas próprias emoções. Julgara que as incertezas haviam se aquietado, para o bem ou para o mal. Enganava-se.

— Eliana me contou do diagnóstico no primeiro ano do casamento, numa noite em que tínhamos exagerado no vinho — ele disse. — Eu a amava e não me importei, nem sabia das implicações do narcisismo e não conseguia raciocinar. Estávamos tão bêbados. Eliana riu sem dar importância ao assunto, depois estava chorando e me fez jurar que nunca a deixaria. Ela me testou para ver até onde poderia ir.

Só então Robert atinou a razão por trás das mudanças de humor da esposa e seus acessos de cólera onde antes existia tão-somente doçura e devoção. Eliana o acusava de negligenciá-la, ainda que Robert se desdobrasse para manter a paz doméstica e inclusive lhe sugerisse que largasse o trabalho para aproveitar a vida. Imaginava que assim ela ficaria feliz, mas Eliana sempre achava um motivo para se queixar ou acusá-lo. Outras vezes, era tão carinhosa que o desarmava.

Enredado em seu dilema, ele consultou um renomado psiquiatra do hospital onde fizera residência. O colega lhe explicou que se tratava de um quadro irreversível. Robert não se conformou. Na realidade, disse o psiquiatra, se a situação se tornasse insustentável, ele teria de se divorciar e cortar todo o contato com Eliana. Do contrário, ela continuaria a manipulá-lo e tentaria retomar o relacionamento. Aquele dia, tenso e tortuoso, trouxe-lhe uma advertência que Robert desacatou.

Ele se recusava a aceitar que não houvesse esperança para Eliana, vítima de uma patologia que dominava suas emoções, pensamentos, ações. Não podia ser punida por isso. Tinha de haver uma maneira de resgatá-la de si mesma. Ele não descansou. Ela continuou a se alternar entre a tristeza, a alegria e a fúria, fantasiando cada vez mais cenários de abandono e perseguição. Houve outros homens nesse período e Robert forçou-se a ter paciência, já ciente de que Eliana o provocava por suspeitar que ele tinha uma amante. Não passava, no entanto, de uma projeção do que ela mesma era capaz de fazer.

— A instabilidade emocional de Eliana se acentuou. Tentei convencê-la a procurar um psiquiatra. Ela se indignou, rebateu que não era louca. — O rosto de Robert denotava derrota. Ele respirou fundo, aprumou-se e acrescentou num voz partida: — Não existe nada pior do que assistir ao sofrimento da pessoa que você mais ama sem poder fazer nada.

Os amigos não tinham ideia do que ocorria na intimidade do casamento deles — em público Eliana era a mulher amável que cativava a todos com pequenos e grandes gestos. Um dia, Robert confidenciou a um amigo o inferno em que vivia com ela. O amigo retorquiu que Robert exagerava: talvez ele é que precisasse de terapia, pois trabalhava demais e isso prejudicava sua vida pessoal. Robert deu-se conta de que era inútil tentar fazer o amigo, ou quem quer que fosse, entender a realidade de seu casamento.

— Além do meu colega psiquiatra e do meu amigo, você é a única pessoa que sabe da condição de Eliana. Infelizmente ela jogou com você como jogou comigo e com todo mundo. Quando percebeu que não conseguia mais me dominar e eu estava me desligando dela, foi atrás de Marco. Agora que descobriu que eu me apaixonei por você, quer nos afastar um do outro para se vingar. Essa é a verdade.

— Você jura, Robert?

— Juro. E juro que amo você e me comprometo a lhe dar toda a felicidade a meu alcance. Mas preciso da contrapartida.

— Contrapartida?

— Eu posso esperar, Marisa. Só não posso amar por nós dois. Ontem você ficou alterada e disse que amava Marco. E hoje? Vai continuar amando um homem que deseja outra mulher?

— Não sei — ela respondeu com sinceridade.

O semblante dele revelou uma esperança melancólica. Robert ia dizer algo, e um ligeiro meneio indicou que havia mudado de ideia. Antes de abrir a porta, murmurou:

— Não vou pressionar você. A decisão tem que ser sua.

As pernas de Marisa fraquejaram e ela se apoiou à parede. Ali estava um homem que a queria e se dispunha a tudo por ela. Suas justificativas não estavam emaranhadas em detalhes como as de Eliana e, justamente por isso, soavam mais francas e reais — Robert não tinha necessidade de se estender em pormenores porque a verdade falava por si; era a mentira que demandava cuidadosa elaboração para se tornar verossímil. O aviso de Zoe roçou-a, passando sem causar efeito. Marisa já tinha ciência dos próprios erros e das armadilhas de um relacionamento. Com Robert, acertaria e retomaria o rumo de sua vida.

— Espera. Eu me decidi.

Ela tocou no ombro dele, imaginando quantas vezes ainda repetiria aquele gesto quando vivessem sob o mesmo teto. Sua solidez a confortou. Robert virou-se e, por uma fração de segundo, Marisa flagrou algo inesperado no olhar dele. Nas íris cristalinas já não havia nem mar nem céu nem sol: ela deparou com órbitas vazias como as da estátua do anjo que montava guarda próximo à sepultura de seu pai. Marisa pensou no sofrimento de Robert ao longo dos anos. E então as órbitas de súbito se encheram de azul e calor. Ela, afinal, compreendeu o que continham.

— Nunca mais me procure, Robert.

Ele a fitou, o olhar recuando para o fundo das órbitas recrudescidas até só restar pedra, frialdade e o vestígio sem cor de um efêmero triunfo.

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora