21. A presença na ausência

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O meio-dia se escoava quando Marisa se separou de Jean-Philippe e Zoe para retornar à praia. Ao se aproximar do trecho onde o grupo havia se instalado, foi de novo dominada pela pressão que a asfixiava. Avistou Robert deitado sozinho na areia, a pele bronzeada um tom mais escura do que o calção cáqui, o abdome torneado rebrilhando com a faixa de pelos úmidos de um mergulho recente. Ele concentrava todo o colorido do dia em vívidos tons de ouro e bronze, e quando Marisa esquadrinhou o entorno, a paisagem deserta desbotou como uma velha fotografia em preto e branco de coisas extintas — uma fotografia da ausência.

Marisa parou diante de Robert e, antes que abrisse a boca, ele disse:

— Eliana e Marco foram buscar bebidas. — Apoiou-se no cotovelo, protegendo os olhos do sol com as costas da mão. — Encontrou alguma coisa interessante?

— Achei isto. — Ela mostrou-lhe um caracol branco. — Zoe pegou um lindo com riscas amarelas. Você devia ter ido com a gente.

— Eu não pego conchas. É ruim para o meio ambiente.

— Por quê?

— Milhões de turistas retiram uma quantidade maciça de conchas todos os anos. Isso aumenta a erosão nas praias. Também reduz as opções de abrigo das algas, caranguejos e aves marinhas que fazem ninhos de conchas para camuflar seus ovos contra predadores. Vi uma pesquisa científica sobre isso.

Ela olhou o caracol na palma da mão e jogou-o na areia.

— Desculpe, não quis ser desmancha-prazeres, Marisa.

— Não tem que se desculpar. Foi bom saber. Daqui em diante não cato mais conchas.

Marisa foi buscar uma garrafa de água mineral na sacola sob as árvores e, estirando-se ao lado de Robert, tomou um gole e passou a garrafa para ele. Comentou da cachoeira sem muito entusiasmo, Robert abanou a cabeça na mesma nota e os dois recaíram no silêncio. Marisa tentou ignorar o corpo dele estendido junto ao seu. Não adiantou: via-o em nítida nudez com os olhos do sonho.

É ela quem lhe tira a roupa, primeiro a camisa, suas mãos escorregando nos músculos do peito e na pele lisa — ele quase não tem pelos ali. O cheiro de colônia a sequestra para um passeio na floresta depois da chuva, é o aroma dos raios de sol se espreguiçando, musgo desprendendo úmido perfume, folhas caídas liberando a alma ao ser pisoteadas, a doçura incorpórea exalada pelas flores. Um sopro sinuoso traz o odor carnal de suor e desejo. Ela desafivela-lhe o cinto, seus dedos resvalando no jeans e, por baixo, a ereção que preme o tecido e a deixa molhada entre as pernas.

— Sabe que às vezes eu penso em morar no Brasil? — ele disse inesperadamente.

Marisa sentiu-se apanhada em flagrante e tossiu para limpar a garganta. Sua voz, ainda assim, soou embargada.

— É mesmo?

— Fui para lá quatro vezes com Eliana e viajamos por vários estados do Nordeste. É um país muito bonito. Gosto do povo.

Ela puxa o jeans dele junto com a roupa de baixo. A faixa de pelos do abdome se espessa na virilha e torna a rarear nas pernas. O pênis é de tamanho normal mas grosso, os contornos imprecisos da carne violácea contra o baixo ventre, veias salientes e pele fina que ela tateia na penumbra. Um súbito clarão envolve-os numa redoma de luz e as lanternas palpitam, o coração de sua luminosidade enfraquece lentamente e reacende até encorpar-se numa ofuscante bola de fogo. Ela o segura numa das mãos, o calor queimando-lhe a palma, e na outra mão a temperatura mais baixa dos testículos. Nesse ponto, ele arranca-lhe o vestido.

— Também conhecemos o Rio, claro — Robert frisou. — A capital, Búzios e Cabo Frio.

— Você deve visitar Paraty. É uma cidade colonial linda do século XVI que foi um porto importante durante os ciclos do ouro e do café no Brasil. Fica numa baía cheia de ilhas. Sabe o mercenário alemão Hans Staden? A história dele é famosa. Naquela época foi capturado na região pela tribo canibal dos tupinambás e passou nove meses tentando fugir.

Ela tenta adivinhar o que Marco e Eliana fazem na outra alcova. Mesmo sem o dado para jogar, Marco é imprevisível. Então, como uma atleta raivosa, Marisa faz de tudo para não ficar atrás deles. Robert a aquieta, beija-lhe o corpo inteiro e ela se esquece dos outros dois. A colcha pesada do leito acaricia sua nudez do mesmo modo que as mãos suaves dele — mãos de médico, acostumadas ao trabalho delicado e à precisão. Junto com elas, um exército de minúsculos insetos caminha sobre seu corpo, coloridíssimos, e cada cor desperta uma emoção diferente, cada toque tece uma trama de sensações.

— E por que esperaram nove meses?

— Quem?

— Os índios. Por que não comeram logo Hans Staden?

— Ah. Os tupinambás foram atacados pela tribo rival dos tupiniquins, aliada dos portugueses, e obrigaram Staden a lutar do seu lado. Venceram e ele virou troféu de guerra. Depois de nove meses, um navio francês o resgatou.

— Interessante. Paraty. Vou colocar na minha lista. Só que antes preciso conhecer o Amazonas para ver a pororoca, a onda mais longa do planeta.

— Sempre tive vontade de descer o Amazonas de barco.

A música também caminha nela, entra nos ouvidos e torna a brotar pelos poros. Ou então as notas viajam no ar, caem e rolam sobre ela, umas incisivas, outras macias como chumaços de algodão, uma a uma provocando-lhe arrepios, às vezes cócegas. E enquanto isso os lábios, a língua, os dentes dele consomem seu corpo. Robert não tem mais pressa. Revira cada centímetro, cada meandro, até deixá-la desfeita e arquejante. Apruma-se sem aviso, coloca o preservativo e deita sobre ela. Toma-a de uma estocada. Toda a paciência, toda a contenção que demonstrou até ali se desintegram no movimento ávido de seus quadris. Agora a consome por dentro.

— Podíamos fazer essa viagem juntos, Marisa.

Sob a intensidade do olhar de Robert, a pulsação dela falhou por um segundo.

— Quem? Você e eu?

— É. Você, eu, Marco e Eliana.

Marisa enrubesceu. Sentou, pegou o protetor solar no canto da toalha e começou a passá-lo, evitando fitar Robert.

— Deixe que eu ajudo.

Ele sentou também. Colocou um punhado de protetor na palma da mão, espalhando-o nas costas dela. Ao primeiro toque de seus dedos, Marisa estremeceu e reteve a respiração. Cerrou os dentes. Não queria sentir nada, nem as mãos macias que deslizavam em sua nuca, flancos, cintura, nem o fio invisível de um arrepio que subia, descia e a circundava em sincronia com aquelas mãos.

Em sua inquietude, Marisa especulou o significado de seu comportamento no sonho. Apresentava uma lógica multifacetada que a confundia. Havia, sim, o desejo de ferir Marco e também outro desejo que ela rechaçava: seria mesmo a lucidez que se acendia de repente em seu corpo e concretizava uma paixão ainda negada em pensamento? E a troco de que negá-la se nem Marco, arrebatado por Eliana, parecia se importar com isso?

Marisa pôs-se a tagarelar para se distrair.

— Depois da nossa conversa na outra noite, estou seriamente considerando fazer faculdade de psicologia.

— Você leva jeito. Tem vocação analítica.

— Não é só isso. Quero contribuir para o bem-estar das pessoas. O curso vai proporcionar ferramentas para me conhecer melhor e lidar com as minhas questões. Aí vou poder ajudar quem precisa. A gente só pode curar a ferida dos outros depois que aprende a curar as próprias mazelas.

— Vai em frente. Você encontrou seu caminho.

Robert pediu-lhe que aplicasse protetor em suas costas. Marisa aquiesceu, tocando-o com cautela para não conjurar a derradeira cena do sonho — aquela em que, acompanhando a fúria dele, sacudida por um violento gozo, as unhas cravadas nas costas cor de damasco, Marisa olhou dentro dos olhos de Robert e viu um anjo.



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Só digo uma coisa: você não vai querer perder o próximo capítulo...  :)

Como sempre, votos são muito bem-vindos!  xoxo

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora