40. O coração pararia

142 16 3
                                    

Miami Beach


Marco marchou pelo corredor do Deque 10, as articulações da mão doloridas, a respiração ainda errática. Seu passo esmoreceu à medida que se aproximava da cabine, e foi com relutância que abriu a porta. A visão de Marisa, mais do que ferir, o entristeceu, pois na fisionomia dela pareciam ter-se acumulado anos e não dias. Entristeceu-o porque aquelas feições pertenciam a uma estranha que nada tinha a ver com a mulher por quem ele havia se apaixonado, em quem tinha confiado sem reservas. Tudo nela era familiar e ao mesmo tempo estrangeiro, seus movimentos bruscos enquanto fechava a mala, a boca contraída, as mãos maquinais.

Rebocaram suas malas pelo corredor junto com outros passageiros que se encaminhavam ao elevador, muitos dos quais, como eles, levando bagagem. Enfrentaram uma fila para alcançar o átrio atulhado e outra para refazer o percurso inverso do embarque. Finalmente, desceram a rampa do navio para a expansão de cimento do porto, cheiro de sal misturado a óleo de motor, o chão áspero e descolorido vigiado por suaves nuvens no céu. Com uma sensação surreal, Marco viu-se a si mesmo e Marisa chegando ali cheios de curiosidade e entusiasmo. Parecia que fora em outra vida.

Os passageiros se escoavam pela rampa em fila indiana e espalhavam-se ao pé do navio, revendo amigos e familiares ou rumando para o ponto de táxi nas proximidades. Marco e Marisa integraram-se ao segundo grupo e tomaram um táxi para South Beach. Conservaram-se calados assistindo ao percurso, primeiro a McArthur Causeway escoltada por palmeiras em uma mancha de águas prateadas, e a seguir Miami Beach com seus edifícios envidraçados capturando as cores do céu. O táxi cruzou as pitorescas ruas em tons pastel do distrito Art Déco e parou diante do Hotel Victor na Ocean Drive.

Marco instruiu o motorista a retirar somente a bagagem de Marisa do porta-malas. Ela o encarou em pânico.

— Você não vai descer?

— Não. Vou procurar outro hotel. Você pode ficar aí e aproveitar os próximos dois dias até a partida. O quarto está pago. Nos vemos no aeroporto.

O semblante desolado de Marisa quase lhe tocou o coração.

— Eu preciso falar com você. Por favor, Marco. Vamos conversar.

Ela não esperou resposta e saltou do carro, pedindo ao motorista que pegasse a mala dele também. Marco saiu contrariado do táxi e a acompanhou. Passaram pela recepção para fazer o check-in — a banalidade de respostas educadas zombando de seu estado de espírito. Depois o trajeto rápido de elevador, a suíte no terceiro andar.

Marco permaneceu junto à porta enquanto Marisa ia para o sofá. Vendo-a ali com suas roupas cinzentas contra o fundo ensolarado da janela, Marco pensou em uma fotomontagem malfeita. Marisa urgiu que sentasse a seu lado e ele aquiesceu, já ciente de que a conversa seria breve. Concedeu-lhe poucas palavras, mal registrando o que ela dizia. Não passavam de frases que se repetiam desde tempos imemoriais e continuariam a se repetir até o fim dos tempos. Como as falas baratas das novelas. Assim era o amor — um amontoado de clichês.

Eu te amo. Me perdoe.

Ela havia transformado seu amor em um clichê. Por um lapso, Marco teve ódio de Marisa. Seguiu-se o nada. Marco não sabia o que estava fazendo ali. Era inútil. Levantou e se encaminhou à porta. Antes de abri-la, riu e voltou-se para Marisa.

— Você percebe a ironia? Se nós tivéssemos escolhido o outro navio, nada disso aconteceria. Mas você tinha razão. Foi uma viagem inesquecível.

— Por que você está me torturando assim?

Marco não respondeu, e Marisa o desarmou momentaneamente:

— Se nós tivéssemos escolhido o outro navio, seria um cruzeiro agradável e divertido. Você surfaria na sua onda artificial e eu me bronzearia na piscina. Nós aproveitaríamos todas as atrações a bordo, eu poderia até ler um livro de Steinbeck e chegaríamos aqui exatamente como partimos, com os mesmos problemas varridos para debaixo do tapete. Voltaríamos para o Brasil e nossa relação continuaria tão insatisfatória quanto no Canadá. Era isso que você queria?

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora