27. Livre arbítrio

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— Você demorou. Não encontrou seu livro?

Era Robert quem perguntava, sentado com Eliana e Marco a uma mesa alta no bar do solário. Passava das duas, e haviam trocado o almoço por aperitivos tailandeses e coquetéis translúcidos onde boiavam fatias de lima-da-pérsia.

— Resolvi procurar outro livro na biblioteca, mas achei nada interessante —respondeu Marisa em tom casual, ocupando um banco vago entre os homens.

— Ainda bem que você desistiu de Laranja mecânica — disse Marco. Esclareceu aos amigos: — Ela teve um pesadelo por causa dessa história.

À alusão de seu sonho com Robert, Marisa cruzou as pernas desconfortavelmente como se o seu segredo se desnudasse diante deles.

— Você é corajosa. — Robert fitou-a sem esconder sua admiração. — Laranja mecânica é um dos meus livros preferidos, mas reconheço que é um desafio decifrar a gíria inventada por Burgess.

— Achei a história instigante. Só que talvez não seja a melhor opção para as férias.

— Qual versão você está lendo? A americana ou a britânica?

— A americana.

— Pode trocar pela britânica. Ela inclui o último capítulo com o final idealizado por Burgess. A editora americana o eliminou por razões comerciais. Burgess renegou essa versão, alegando que ela promove uma visão empobrecedora do ser humano.

— Empobrecedora como? — Marisa questionou.

A resposta foi longa.

Marco tomou a dianteira de Robert: também teria sugerido a edição britânica a Marisa se soubesse que ela estava lendo a outra. O propósito da ficção, afirmou Marco, era mostrar a transformação e o amadurecimento do herói. E sem o último capítulo, Laranja mecânica não passava de uma alegoria do mal, ignorando a capacidade de transformação e amadurecimento das pessoas pelo livre arbítrio.

Robert atropelou Marco: na nota introdutória, Burgess ressaltava o poder do livre arbítrio do ser humano para decidir entre o bem e o mal. Retratá-lo como uma criatura controlada pelo bem ou pelo mal equivalia a reduzi-lo a uma laranja mecânica — viçosa e suculenta por fora, reles engrenagem por dentro para Deus ou o Diabo darem corda.

— Ele se referia à imposição de uma moralidade mecanicista sobre um organismo vivo cheio de sumo e doçura — Marco analisou.

— Uma moralidade mecânica ditada por Deus, pelo Diabo ou pelo Estado — frisou Robert.

— E hoje o Estado está tomando o lugar de Deus e do Diabo. Burgess foi profético — Marco interpôs.

Aturdida no meio daquele fogo cruzado, Marisa começou a suspeitar que Marco estivesse com ciúme de Robert e quisesse provar que também tinha algo a dizer. Ele gostava de debates intelectuais para trocar ideias, nunca para se exibir, e definitivamente não tinha o hábito de atravessar seus interlocutores. Que Marco tentasse impressioná-la era sinal de que a briga havia sido superada. Marisa se alegrou. Não durou muito.

Erguendo a mão, Eliana os interrompeu:

— Calma, rapazes. Eu não consegui passar da primeira parte do livro e concordo que não é a leitura ideal para um cruzeiro. Ninguém quer ficar lendo sobre violência, o bem e o mal na beira da piscina. Eu indicaria um clássico para Marisa, como A rua das ilusões perdidas de Steinbeck ou sua continuação, Doce quinta-feira. Talvez até A leste do Éden.

O rosto de Marco se iluminou.

— Eu não sabia que você gostava de Steinbeck, Eli.

— Adoro. Robert acabou de me dar uma caixa com a obra completa dele.

— Pois A leste do Éden ilustra justamente o raciocínio de Burgess sobre a capacidade humana de escolher entre o bem e o mal.

— Tem razão, Marco. Pensei em A rua das ilusões perdidas e Doce quinta-feira porque são histórias leves. — Eliana dirigiu-se então a Marisa. — Você já leu A leste do Éden? É a obra-prima de Steinbeck.

— Não. Mas li toda a coleção do Homem-Aranha.

Os outros riram, e ela riu junto para dissimular seu constrangimento.

— Por incrível que pareça, o Homem-Aranha também cabe nessa discussão —concluiu Marisa, arrematando a ideia que acabava de lhe ocorrer: — Uma das frases famosas da história dele é que com grande poder vem grande responsabilidade. De fato, abster-se de uma coisa que se pode fazer com impunidade é um louvor ao livre arbítrio e um sinal de grandeza.

Todos concordaram, e Marisa ficou aliviada de dar ao menos uma contribuição à conversa. Mesmo tendo crescido no meio dos livros graças ao incentivo do pai, sentiu-se inepta entre os três, que habitavam um mundo tão diferente do seu: o mundo de pessoas na faixa dos trinta, cultas, experientes e bem-sucedidas. Pessoas que já haviam definido sua vida e lido os clássicos de John Steinbeck. Além disso, as intermináveis conversas de Marco e Eliana davam-lhe nos nervos. Marisa pensou na carta que escrevera. Talvez Marco a julgasse pueril comparada à sofisticação de Eliana. E agora ele a chamava de Eli. Marisa deu-se conta de que a demonstração dos conhecimentos dele sobre Laranja mecânica podia na verdade ter por alvo Eliana.

— Você vai gostar de A leste do Éden — Robert garantiu-lhe, tocando seu braço de leve.

O toque dele trouxe-lhe conforto e uma indefinível nostalgia. Marisa, entretanto, não teve tempo de sorvê-la ou compreender seu significado, pois Eliana empurrou uma travessa em sua direção, insistindo que provasse os camarões com chutney. Marisa agradeceu e mordiscou um sem vontade, agastada com a excessiva gentileza de Eliana. Agora ela tagarelava que haviam marcado uma sessão de massagem no spa vizinho ao solário.

— Vamos, Mari? — Marco perguntou. — Nossa sessão é daqui a meia hora.

— Não posso. Tenho outros planos.

Ele ergueu a sobrancelha.

— Que planos?

— É segredo. Agora preciso ir. — Marisa sorriu, levantando da mesa. Virou-se para Marco: — Vejo você mais tarde.

Com um aceno, desertou do bar, a doçura do chutney ainda em sua boca com um travo azedo. A presença dos três a oprimia — Marco e sua angustiante inconstância, Robert cujo toque se apropriava dela, Eliana roubando implacavelmente as atenções de Marco. A isso somou-se a previsão de Madame Lefèvre, que Marisa afastou da mente.

Avançou pelo convés e não reparou que Zoe se aproximava. Se a amiga não a chamasse, teria esbarrado nela. Marisa estacou, levando a mão à boca para suprimir uma exclamação de susto.

— Nossa, você anda com a cabeça nas nuvens. Onde está Marco?

— No solário com Eliana e Robert.

— Aonde você vai?

— Não sei. Eu precisava ir embora dali senão ficava louca.

Deixando-se cair em uma espreguiçadeira nas proximidades, Marisa pôs a mão na testa e fechou os olhos um instante.

— Ei, o que houve? — Zoe sentou a seu lado, dando-lhe uma palmadinha no ombro.

— Estou perdendo Marco.

Marisa desabafou mas não teve coragem de mencionar a declaração de Robert. Nem como ele a afetava cada vez mais, de uma maneira que Marisa não queria admitir nem para si mesma.

— Por que você não entregou a carta para Marco?

— Os outros estavam perto. Eu vou esperar ele voltar para a cabine. Mas para ser sincera, a esta altura nem sei se vale a pena entregar nada...

— Lógico que vale. Você tem que lutar pelo que quer. Escuta, eu estou indo ao cabeleireiro fazer um penteado para o baile. Quer vir comigo? Você vai se sentir bonita e ficar mais animada. E então... Marco que se cuide.

Marisa ia recusar. Aí teve uma ideia.


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Alguma ideia de onde isso vai dar? Os acontecimentos da história tem surpreendido você?  xoxo


VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora