6. Um dia adorável

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Uma vez terminado o treino de emergência, a âncora foi içada e a voz do comandante ressoou nos alto-falantes desejando a todos boa viagem. Marisa e Marco subiram ao Deque 13, onde um convés mais compacto coroava o Aquamarine com um campo de minigolfe e o Moon Rock Club, uma casa noturna circular com paredes de vidro e vista de 360 graus para o infinito azul. Seu interior retrô-futurista de aço e acrílico provia um bar giratório ao centro e uma falsa Via Láctea sobre a pista de dança.

Durante o dia o clube funcionava como um observatório turbinado pelos drinques do bar. Naquele final de tarde, o Moon Rock acolhia uma clientela esparsa — a maioria dos passageiros estava prensada nas amuradas dos deques inferiores tirando fotos, filmando ou espiando o cenário em movimento. Lovely day de Donavon Frankenreiter dava o tom dos dias por vir.

Sunny skies in your eyes

Summer warmth on your skin

On the horizon the sun rises

What a lovely day to begin

Marco e Marisa sentaram a uma mesa na proa com suas margaritas em punho enquanto admiravam ilhas artificiais e veleiros à medida que o Aquamarine avançava pelo canal do porto. Os passageiros aglomeravam-se a bombordo para acenar seu adeus à cidade. A estibordo despontavam os arranha-céus de Miami Beach. Em breve o Aquamarine contornava a ponta branca da ilha rumo ao mar aberto, deixando para trás suas areias pontilhadas com as guaritas coloridas dos salva-vidas.

— Me fale mais da surpresa — disse Marco, sem tirar os olhos da vidraça.

Marisa o encarou e, sem se conter, riu.

— Como você é curioso. Quando nos conhecemos, nunca imaginei que você fosse assim.

— E como imaginou que eu fosse?

Ela se demorou mexendo sua bebida com o canudo.

— Não sei... Mais relaxado. Menos controlador.

— Eu, controlador? — ele perguntou, distraído. — O que isso tem a ver com o fato de eu querer saber qual é a surpresa?

— Tudo. — Ela sorriu sem convicção. — Você não gosta de perder o controle. Se eu falo de uma surpresa, você precisa descobrir o que é. Melhor eu ficar quieta.

Àquelas palavras, Marco fixou nela os olhos escuros.

— Você tem ficado quieta ultimamente. Quieta até demais. Depois que fomos para Toronto, você mudou. Se eu soubesse que as coisas seriam assim, não teria chamado você para ir comigo.

— Se arrependeu, é? — Marisa o relanceou com ar magoado e fingiu concentrar-se na vista.

— Claro que não.

Marco quis segurar-lhe a mão. Marisa deixou o copo sobre a mesa com um baque e o ignorou. Junto com a vertigem experimentada na cabine, o antes se evaporou de um átimo. O que restou foi o lodo acumulado no fundo do depois.

Ele se arrependia de tê-la levado para o Canadá. Aquele pensamento a consumia desde a noite em que Marco havia dormido no sofá. Marisa o acusara de ser egocêntrico e insensível. Ele retaliara que não suportava mais viver com uma mulher imatura, despreparada para a vida adulta. No dia seguinte, enquanto queimava de febre, Marisa alucinava e ouvia Marco na sala de estar imprecando contra ela aos brados. Ao encontrá-la prostrada na cama à noite, ele a levou ao pronto-socorro e a encheu de cuidados. Fizeram as pazes. O jantar dele continuou sendo guardado no forno e Marisa evitou perturbá-lo com queixas.

— Quer saber, Marco? Aprendi a me calar para não atrapalhar o seu trabalho trabalho trabalho.

— Eu não obriguei você a ir para Toronto. Não aceitaria a proposta se você preferisse ficar no Brasil. Mas, a partir do momento em que aceitei, tive que provar minha competência, será que isso não é óbvio? Você sabia que quando assumi o cargo a escola estava um caos e precisei debelar todos os problemas da administração anterior. — Ele já não escondia a exasperação. — E outra coisa: era minha responsabilidade garantir o nosso sustento. Assim como você, eu não fiquei contente com as longas jornadas de trabalho mas não tive opção. Você poderia ter se esforçado mais para se adaptar.

Ruborizando-se, Marisa torceu as mãos. Marco fizera doutorado em São Francisco e falava um inglês impecável. Nem cogitava a dificuldade dela com o idioma. Embora Marisa conseguisse se comunicar relativamente bem, o inglês aprendido na sala de aula não a preparara para o cotidiano em um país estrangeiro. Numa ocasião, foi a um bar com Marco e um colega dele e, em meio à música alta, passou horas sorrindo e balançando a cabeça sem fazer ideia do que o sujeito falava. Noutra, telefonou para obter uma informação e, depois de pedir que a pessoa do outro lado da linha repetisse uma frase três vezes, desligou e chorou. Como é que progrediria se nem sequer entendia o que os outros diziam?

Transitava por aquela nova vida com uma sensação de precariedade, sem confiar na firmeza de seus passos ou na solidez do terreno. Acabou se apaziguando, mas o desassossego retornou quando ela percebeu que estava no curso errado e nem de longe vislumbrava qual era o certo. Agora sabia encontrar os caminhos na cidade mas não dentro de si mesma. Para piorar, o relacionamento com Marco se deteriorou. A vida ia virando do avesso e isso a aterrava. Quanto mais ela se recriminava por sua inabilidade em solucionar a situação, mais paralisada se sentia. Nunca compartilhou sua insegurança com Marco por vergonha.

— Eu me esforcei para me adaptar, sim. — Ela gesticulou exaltada. — Me esforcei sozinha e nunca me senti tão isolada.

— Isolada? E as amizades do curso de inglês e da universidade? Se nós continuássemos em Toronto, você poderia fazer outra faculdade e as coisas voltariam ao normal. Você tinha tudo.

— Eu não tinha você, Marco. E sem você a minha mudança para o Canadá não fazia muito sentido, fazia? Como dizem, o relacionamento é uma planta que precisa ser regada todos os dias...

— Tentei dar o melhor para você.

— ... e a nossa planta foi secando por falta de água.

— O que isso significa? — A fisionomia dele se anuviou.

— Será que você não enxerga?

— Do que é que você está falando, Mari?

— Não enxerga ou não quer enxergar?

Marco cerrou o punho, as juntas embranquecendo.

— Quer parar de responder à minha pergunta com outra pergunta?

— Aqui vai a sua resposta, Marco: se você não sabe o que isso significa, eu também não sei.

— E é assim que nós vamos recomeçar do zero?

Aquela pergunta não demandava resposta e sim mais perguntas.


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As coisas vão esquentar daqui pra frente, preparem-se!

Eu costumava deixar notas criativas e divertidas em VERMELHO, mas nos últimos 2 anos minha energia e meu tempo foram totalmente drenados, e escrever/traduzir esta história por si só me consome. Precisei mudar 6 vezes e estou indo para a sétima em 24 meses, sendo que isso foi apenas um dos problemas que tenho debelado, digamos uma gota no oceano...

Bom, considere-se hipnotizada ou hipnotizado... Por favor, comente ou pelo menos vote neste capítulo--leva só 1 segundo e significa muito pra mim. Valeu!  :)

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora