28. O oceano ignorado

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Marisa precisou esperar porque não tinha hora marcada, e sem que as duas percebessem o tempo passou entre penteados, manicures e os relatos de Zoe sobre suas peripécias com a banda de Jean-Philippe. Já havia escurecido quando as duas se despediram, combinando de se verem mais tarde no baile.

De retorno à cabine, Marisa passou diante da loja de conveniência e notou um carrinho de flores à entrada. Em meio a rosas e arranjos coloridos, sobressaía um buquê amarelo. Ela reconheceu a flor que Marco havia dado para Eliana e examinou a etiqueta no maço. Chamava-se sino-amarelo, símbolo nacional das Bahamas. Não era tão rara afinal, pensou Marisa, devolvendo o buquê ao carrinho.

Marco lia na varanda quando ela chegou, o tronco ereto qual rocha escarpada. Pequenos gestos narravam seu estado de espírito: a maneira de indagar, sem virar a cabeça, aonde ela havia ido; a irritação ao fechar o livro; a milimétrica exatidão ao deixá-lo sobre a mesa, num esforço para conter uma explosão de fora para dentro.

Marisa acercou-se. Relanceou a capa de 59 segundos sobre a mesa.

— Eu estava no salão de beleza com Zoe.

— Você devia ter avisado que ia demorar. Afinal de contas... — Marco levantou de um salto, incapaz de refrear o choque. — O que você fez com seu cabelo?

— Gostou?

Ele correu os dedos nos fios macios com ar indeciso. Por fim, concedeu:

— Eu prefiro cabelos longos, mas esse estilo não ficou mal.

Era um corte em camadas à altura da nuca com mechas acobreadas aqui e ali. Marco demorou-se acariciando seus cabelos, quase a contragosto. Sua expressão — os olhos escuríssimos, o arco pétreo das sobrancelhas, a boca severa — se suavizou por um segundo. Depois ele se afastou.

— Estou morrendo de fome. Vamos jantar. Eliana e Robert vão passar aqui às nove. Queremos ver o show no átrio antes do baile.

Claro, Eliana e Robert, Robert e Eliana. Com um suspiro, Marisa pegou a bolsa onde havia guardado a carta, determinada a entregá-la durante o jantar. Foram a um restaurante japonês cuja bela decoração com sinos de bronze e lanternas de sonho passou em branco para Marco enquanto ele se concentrava em comer com gosto. Gosto ou raiva, Marisa não soube dizer. Ela resolveu esperar mais um pouco para dar-lhe a carta, que àquela altura era uma barra de chumbo no fundo da bolsa.

A ansiedade de Marisa cresceu minuto a minuto e ela forçou-se a engolir a comida. Marco tendia à impaciência quando estava com fome. Ao terminar de comer, se descontrairia — bom sashimi, forte saquê — e ficaria mais acessível. O humor dele, porém, não melhorou depois que devorou o último bocado e bebeu o último gole. Em vez disso, Marco chamou o garçom com um aceno brusco para fechar a conta, coisa que não condizia com suas maneiras habituais. O garçom fez-lhe um sinal de entendimento e parou em outra mesa. Marco se enervou.

— Calma, também não é para tanto — Marisa disse. — Podemos avisar Robert e Eliana que vamos atrasar uns minutos. Eu queria...

Ele mal a escutou e acenou de novo para o garçom, que se apressou em trazer a conta. Marco a assinou e já foi levantando. Imobilizou-se ao lado da cadeira.

— Você queria mais alguma coisa?

Ela pegou a bolsa e vacilou.

— Nada. Não é nada importante.

Os dois se prepararam então para o baile. Enquanto ele entrava no chuveiro, Marisa colocou a carta no bolso da fantasia de Marco. A sorte decidiria o momento certo para que ele a encontrasse.

Marisa terminou de se maquiar e prendeu um laço vermelho nos cabelos. Ao abrir a porta do banheiro, parou. Marco, de costas para ela, segurava um lenço de seda enquanto tentava ajustar o colarinho da camisa por baixo da sobrecasaca negra. Usava calça preta por dentro de botas e colete sobre a camisa branca com punhos de renda, que davam acabamento à sobrecasaca de tecido fino e estruturado.

Ela cobriu a distância que os separava e ajeitou o lenço de seda no pescoço de Marco. Pondo-se na ponta dos pés, deslizou os dedos pela costeleta fina dele e beijou-lhe os lábios. Demorou-se sentindo sua maciez, inalando a fragrância refrescante da colônia que ele havia acabado de aplicar.

— A fantasia ficou perfeita em você.

— Provavelmente vou derreter com essa roupa. Ande logo, Robert e Eliana devem chegar em dez minutos.

A secura dele a magoou. Dando-lhe as costas, Marisa abriu o armário e pôs um vestido longo com saia dourada e espartilho azul arrematado por fitas vermelhas. Não pediu a Marco que a ajudasse a apertar o espartilho. Na hora de escolher os sapatos, arrebatou as sandálias que Robert lhe presenteara e calçou-as com deliberado vagar. Marco agora a observava, fixando-se em seus lábios vermelhos, descendo para o decote generoso e a saia. Ao chegar às sandálias, ele desviou o rosto.

— Deixei uma coisa para você no bolso da casaca — Marisa disse, internando-se no banheiro para dar o último retoque nos cabelos.

Marco não respondeu. Uma batida soou à porta e, dentro de instantes, ele exclamava:

— Você está linda, Eli.

De pronto Marisa reuniu-se a eles na área de estar. Robert surgiu em primeiro plano de jeans e regata preta, uma corrente grossa de prata no pescoço. Não mais médico compassivo, tinha se metamorfoseado em uma criatura perigosa: um traço fino de lápis lhe estreitava os olhos, conferindo-lhe uma qualidade magnética. Respingos de tinta vermelha decoravam a parte frontal da camiseta, e perto do canto da boca ele havia pintado uma gota rubra.

Robert a contemplou do mesmo modo que Marco — primeiro seu rosto, depois o vestido e por fim as sandálias. Não as mencionou, voltando sua atenção ao ponto inicial.

— Você ficou maravilhosa com esse corte de cabelo.

— Eu quis mudar.

Os dois trocaram um sorriso. Nisso, Eliana assomou de trás dele e Marisa sentiu uma aguilhoada no estômago. De repente sua fantasia, maquiagem, penteado perderam brilho comparados com os da outra. A outra que encantava Marco resplandecendo em um macacão justo de vinil preto, a cascata de cabelos loiros nos ombros nus, a máscara circundando um par de olhos que já não lembravam cor de muco e antes irradiavam um matiz exótico em sua indefinição entre o verde e o castanho.

Puta.

Eliana cumprimentou-a, elogiou profusamente seus cabelos e voltou a falar com Marco, que não cansava de comentar como ela estava diferente com aquela fantasia. Marisa teve ganas de recolher a carta — fora estupidez escrevê-la — e quase a recolheu de fato. Marco, porém, já guardava o cartão de bordo no bolso e abria a porta para saírem.


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Então... A famosa carta está perdida num bolso e o famoso baile está prestes a começar. Como diria Drummond, e agora, José?  ;)

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora