11. Vermelho cinsault

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A magia do cinsault tornou o corpo leve e a cabeça um pouco aérea, de modo que os pensamentos migravam do cérebro para a boca sem resistência. Marisa observava com interesse Robert sentado ao lado da mulher como um colegial ajuizado. Em contraste com a patética desenvoltura adotada longe de Eliana, ele agora se portava com uma formalidade que divertia Marisa. Bêbado ou colegial, no entanto, Robert a exasperava.

Assim, sem resistência, Marisa endereçou-lhe um sorriso melífluo.

— Fico contente que você tenha aprovado o vinho, Robert. O que mais gosta de beber? Uísque? Tequila?

Ele tangenciou a ferroada com um murmúrio ininteligível. Ela continuou jovialmente:

— Engraçado, tenho impressão de conhecer você de algum lugar. Será que já nos vimos antes?

— Talvez você tenha visto Robert em South Beach — disse Eliana. — Nós também estávamos lá esses dias.

O olhar de Marisa dardejou na direção dela e retornou a Robert.

— Não, não foi em South Beach. Mas tenho certeza de que já vi você.

— Então deve ter sido no porto antes do embarque — Eliana sugeriu.

Dessa vez Marisa nem sequer a relanceou.

— Também não. Será que foi aqui mesmo no navio, Robert?

Ele pareceu magoado com as insinuações dela. Seus lábios se apartaram com relutância para responder sabe-se lá o quê, e nisso os pedidos chegaram à mesa. Durante a momentânea interrupção, Zoe se pôs a falar da banda de Jean-Philippe e todas as atenções gravitaram para o músico. Era um homem franco de seus vinte e poucos anos que deixara sua cidade natal, Porto Príncipe, com a ajuda de um tio que morava em Miami. O assunto deu a Robert a oportunidade de contar que havia passado seis meses na capital do Haiti como voluntário dos Médicos Sem Fronteiras. A conversa se alongou pela refeição até os pratos vazios serem retirados da mesa.

— O que mais me impressionou foi o povo haitiano. Sorridente, mesmo em face da adversidade — Robert relembrou. — Quando terremotos devastaram o país, eu quis voltar lá. Eliana me convenceu a desistir da ideia. — Ele tamborilou os dedos na toalha de linho branco. — De qualquer maneira, eu precisava cuidar da minha clínica em San Diego.

— A comunidade internacional sempre se mobiliza para apoiar os haitianos em tempos de crise. Depois da ajuda  emergencial, esquece o Haiti. Visito minha família lá e ajudo como posso, mas é difícil — disse Jean-Philippe.

— A situação do Haiti é paradoxal — analisou Marco. — Tornou-se o país mais pobre do hemisfério ocidental apesar de ser a primeira colônia do mundo a se libertar da escravidão. Pagou por isso com décadas de isolamento e uma multa pesadíssima.

Jean-Philippe assentiu com um meneio.

— Tudo está por reconstruir. Se vou num restaurante local, muita gente fica na calçada esperando eu terminar a refeição para comer os restos do meu prato...

A garçonete trouxe o carrinho de sobremesas com uma seleção de suculentas fatias de bolo, tortas e panna cottas envolvidas por uma lustrosa calda de caramelo. Cada um escolheu a sua, e o grupo comeu sem entusiasmo.

Robert, o garfo esquecido na mão, mirou o vitral nos fundos com sua delicada trama de folhas e flores.

— Eu devia ter voltado para lá — murmurou.

— Você fez o melhor que pôde — Eliana replicou depressa. Virou-se para os outros: — Robert trabalhou sem descanso na missão. Chegava a fazer até quatro cirurgias por dia e salvou muitos pacientes com queimaduras e ferimentos graves.

— Todos os voluntários trabalhavam sem descanso — ele frisou.

— Prefiro recordar o Haiti de outro jeito — disse Jean-Philippe. — A dignidade do povo mesmo na adversidade e o ativismo que está despontando. As águas azuis do Lago Etang Saumâtre. Os tap-taps de carroceria colorida. A feira de artes na Praça Saint-Pierre. Os sons do créole e da kompa nas ruas.

Zoe deu-lhe uma palmadinha no ombro.

— Adoro a cultura negra. Somos todos herdeiros dela. Até mesmo aquele supremacista branco dos Estados Unidos. Você ouviu a história? Ele fez um teste de DNA e descobriu que tinha catorze por cento de sangue negro. Eu vi o resultado do teste na televisão. Foi hilariante: aquele sujeito carregava traços subsaarianos no sangue.

— O que significa que ele era super black — concluiu Marisa, e todos caíram na gargalhada.

O café foi servido e todos se descontraíram. Robert agora se mostrava bastante extrovertido — ganhando rapidamente a simpatia de Zoe, Jean-Philippe e Marco com suas gentilezas e comentários inteligentes — enquanto Eliana vigiava o copo dele. Marisa limitava-se a observar Robert com crescente perplexidade. Não o conhecia nem há um dia e ele já lhe mostrara quatro facetas díspares: o bêbado canalha, o colegial cerimonioso, o médico altruísta e o comensal cativante. Não havia continuidade entre elas. Robert parecia um quebra-cabeça com peças faltando. Não fazia sentido.

Não tardou, porém, para que outra questão ocupasse a mente de Marisa. Tendo repassado as atrações da noite na brochura que ela havia trazido, o grupo divergiu entre os que preferiam ver a banda de reggae Jamaican Vibe no bar Dazzling Diamond e os partidários do Jazz Combo no Tourmaline Cabaret. Marisa, Zoe e Jean-Philippe se inseriam entre os primeiros, Marco e Eliana entre os últimos. Robert não se pronunciou.

Alerta, Marisa olhou de esguelha para Eliana. Não lhe agradava a ideia de deixar Marco a sós com ela. Na realidade, seu desagrado oscilava à beira do pânico, fazendo com que se sentisse infantil e mais inepta do que nunca. Ponderava por que não podia exibir a mesma altivez de Eliana. Afinal, era normal Marco ter amigas, certo? A fórmula certeira para irritá-lo era comportar-se de forma irracional. Marisa quis mostrar-se madura, magnânima, elevada. E no entanto:

— Vou com vocês no Tourmaline Cabaret.

Marco balançou a cabeça.

— Mari, você está louca para ver o show de reggae. Vai se entediar numa apresentação de jazz instrumental.

— Eu gosto de jazz.

— E morre se perder o show da Jamaican Vibe.

Ela se calou, derrotada por seu próprio argumento, e Marco interpelou Robert:

— O que você resolveu? Reggae ou jazz?

Marisa perscrutou Robert. Agiria de forma madura, magnânima e elevada, repetia de si para si. Mas então de onde vinha aquele mau pressentimento?

— Jazz — Robert respondeu por fim.

Ela relaxou.

— Se você prefere ver o outro show, não tem problema. Marco me faz companhia — Eliana disse.

Robert titubeou. Sem perceber, Marisa torceu a brochura nas mãos até que ela se rasgou.


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VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora