17. Atração e retração

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A voz de Marco alcançou Marisa como um eco longínquo e mal-vindo. Depois o rosto dele entrou em foco, o maxilar rígido e um sulco na testa, a expressão sombria acentuada pela penumbra que os cingia. A luz cambiou. O dourado chamejante empalideceu silenciosamente até se desfazer em soturno prateado. Marco segurou Marisa pelos ombros e a sacudiu. A indignação a dominou: agora que ele havia concluído sua sessão com Eliana, o hipócrita vinha censurá-la por cair nos braços de Robert. Ela o repeliu com um empurrão.

— Eu te odeio!

Enquanto Marisa fixava em Marco os olhos vidrados, ele alisou-lhe os cabelos num gesto tranquilizador.

— Mari, sou eu. Você teve um pesadelo.

Viscerais e desconexas, as cenas ainda desfilavam diante dela, e Marisa cruzou o umbral da realidade com um frêmito. Buscou a mão de Marco.

— Você está gelada. O que foi que sonhou? — Ele relanceou o livro aberto sobre a cama. — Pare de ler isso. É violento demais.

Os eventos do dia afluíram à memória de Marisa, um após o outro até o quebra-cabeça ficar completo. Depois do almoço, tinha dado uma volta no navio com Marco e os dois finalmente se entregaram à indolência, esparramando-se na cama cada qual com seu livro. Ela havia adormecido em meio às páginas de Laranja mecânica...

Em seu corpo frio sentiu o calor de Robert aderindo à pele como uma crosta de lama. Ainda estonteada, sentou-se apoiando as costas na cabeceira. Foi só um sonho. Conforme postulava Freud, o sonho era a realização de um desejo. No caso dela, um rasgo de ciúme e retaliação contra Eliana e Marco. Nada mais.

— Conte o que você sonhou e vai se sentir melhor — Marco insistiu.

— Nós dois estávamos no suingue. — Ela evitou o escrutínio dele, mirando o céu tingido de vermelho através da porta envidraçada. — Prefiro não falar sobre isso.

— Eu não achei que o convite fosse deixar você tão transtornada, senão nem teria sugerido a festa. Eu sei que você quer ajudar nossos amigos. Não precisa se preocupar. Eles desistiram do suingue. Vou convidar os dois para jantar, assim nós podemos rir disso e esquecer o assunto.

Marco fez menção de pegar o interfone. Marisa o deteve.

— Não. Faz tempo que não ficamos sozinhos e quero você só para mim.

Duas verdades concomitantes se debatiam naquela afirmação. Ela desejava, sim, passar mais tempo a sós com Marco. Desejava também esquivar-se de Robert e Eliana.

— Você está insegura — disse ele. — Acho que o que tem afetado você, além da mudança para o Canadá, é a sua incerteza com relação ao meu casamento. Vamos para a varanda e eu conto tudo sobre Lorena. Está na hora de exorcizar esse fantasma de uma vez por todas... — Fez uma pausa, o cenho franzido numa súbita constatação. — Sabe, Mari, carreguei o fantasma dela comigo por reflexo. Às vezes a gente se esquece de reciclar velhos hábitos. Não vou mais permitir que isso prejudique a nossa relação.

As palavras de Marco acirraram o remorso dela. Tinha se absorvido tanto em suas questões com Eliana e Robert, que esquecera a história inacabada dele — a história do homem que ela amava. Sentaram na varanda e Marco adotou o mesmo tom ausente ao retomar o relato no ponto onde havia parado.

— Eu não fazia ideia de como Lorena reagiria se soubesse do meu amor. Intuí que ela não era indiferente a mim. Mas Lorena tinha grande apego ao noivo e não queria desapontar a família. Ela me contava dos preparativos para a cerimônia, a casa nova, as flores para a igreja, o vestido de noiva. Aquilo me matava. Um dia, Lorena desabafou que estava indecisa desde o início. Faltavam dois meses para o casamento. Tomei coragem e me declarei.

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora