Flama na Nevasca

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       Noite de nevasca densa em alguma encosta escondida. Numa floresta obscura em algum lugar do mundo. De outro lugar, noutro além, distante de toda vida, de longe veio.

       Estampidos. Pedras saltitando desesperadas. Passos largos enfurecidos ao ar. O sopro quente jogado a esmo de sua boca. O cavalo bateu com as quatro patas no chão de uma vez chocando os cascos contra a rocha. Às suas costas, erguiam-se vinte metros de queda rochosa num chão enganosamente macio. Ainda assim, ele continuava em pé, corria, viver era correr.

       Tinha muitos motivos para se apressar: os caçadores em seu encalço; a escravidão em forma de sela num estábulo de feno podre; os chicotes pela desobediência de querer cascos livres sem ferraduras; e por último os espíritos aglutinando tronco, solo e rocha a seu redor. Tudo se movia envolvendo o animal em manchas disformes, às vezes brancas, somadas a cores mortas de tronco velho cortado pelo vento.

       Duvidava da vida, mas não de suas patas. O galope frenético o fez desvencilhar-se das investidas de outros grupos de lobos cinzentos. Estavam em seu encalço. Comiam seu cheiro. Os dentes afiados vinham cercá-lo pelos flancos. E uma coisa que acontece entre os animais é que eles atraem outros a seus pertos. Mesmo entre embates de caça e caçador, nem que seja uma borboleta pairando flores. Nessa noite, tanta nevasca deixava as tocas mais aquecidas. Não era convidativa aos animais da floresta. Nenhum leão da montanha saiu.  Nenhum urso. O vento tinha forma de lobos, de espíritos estranhos a qualquer ser vivente e o cavalo a pleno sabor de suas milhas sabia disso entre o galope de seus dentes.

       Por detrás das manchas vorazes pulava o luar. Ele era o açoite para as patas em frenesi do fugitivo. O cavalo... O qualquer que se vê nas ruas trotando. Não tinha nenhuma identidade, senão, a de pangaré teimoso, merda de cavalo, potro imundo, mula besta, mula imunda, mula mais teimosa que um asno, e que, todavia, não era nenhuma mula... mal sabia o outro, que o galopara, a pontapés pontudos antes, que este pangaré seria dotado de tamanha resistência. Seriam as pressas da vida fazendo ele viver?

       Mas seus perseguidores eram mestres na arte da caça. Os declives surgiram, subindo desta vez. Eram de árvores e morros, fechando seus espaços, afunilando seus caminhos, a pressão claustrofóbica aumentando. Até o fim da linha, como dizem os bandidos de beira de estrada vazia. Nada à frente, só desesperança dura, morta, querendo também que o baio morresse. Sua cor dissolvia o corpo abeirado da neve, mas nem isso o escondia. Viu-se completamente cercado contra uma montanha intransponível de pedra, musgo e desespero. Vinte metros retos dos quais se cai, mas não se sobe.

       Foi difícil dar-se por vencido. Olhou para a parede, pior do que a própria casa. Pior do que seu resfolegar tão honesto surtir em mão alheia um aperto de cortas para chicotadas. Delas não morria. Não. A pedra escorria como rio lá de cima, sem possibilidade de atravessar. Os perseguidores já estavam ali revelando os dentes. Estes, chicotes por matar.

       O último apelo veio em forma de duas batidas duras de seus cascos na neve. Mas que assassino deixa a inocência viver? Ainda conseguiu acertar bons coices nos seus perseguidores. O bastante para separar mandíbulas de crânios e de dar ao chão branco de neve mais umidade. A neve assistia tudo pacientemente na espera do banho de vísceras. Os convivas tinham o gosto do cavalo em seus lábios. Restava-lhes aguardar a uma certa distância, longe dos cascos em riste. O gigante atrás, calado, não deixaria a presa fugir. Bastava aos lobos aguardarem. O banquete seria recompensador aos fortes, pois a força é muitas vezes recompensada pelo cansaço. Aqueles companheiros caídos seriam devorados também, suas gorduras eram necessárias. Olhos, peles, gengivas, órgãos, membros, tudo necessário. Orelhas, línguas, caudas, toda carne necessária. Os caninos logo estariam lambuzados, podendo escolher o que preferiam: irmãos ou presa?

Kings Aderio e O Sopro que Dobra a MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora