Memoria amorosa

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Há um monte de coisas para as quais o sonho não me preparou. Como ver o corpo da Mamãe tão imóvel e parecido com uma estatua deitado no caixão. Eles colocaram muita maquiagem nela. Mamãe quase nunca usava mais do que rímel e brilho labial. No caixão, ela parece uma boneca pintada. Bonita. Pacífica. Mas não ela, você sabe? É difícil olhar para ela assim, mas eu também acho difícil desviar o olhar.

Ou para a linha de pessoas que fazem fila para olhar para ela, e depois esperam para falar comigo. É como uma recepção de casamento inversa. Primeiro, ver o cadáver. Dizer suas despedidas. Então, dizer olá à família. Todos pensam que Mamãe morreu de câncer, então eles continuam falando sobre a dor. 

— Pelo menos ela não está mais sentindo qualquer dor — eles me dizem, dando tapinhas na minha mão. — Ela está além da dor agora.

Pelo menos isso é verdade.

Ou o funeral atual. A parte da igreja. Sento na primeira fila com Jeffrey e Billy, a poucos metros do caixão da Mamãe. Papai ainda é um não-comparecimento, e parte de mim se sente traída por isso. Ele deveria estar aqui, eu acho. Mas eu sei que ele está em um lugar melhor, literalmente. Com a Mamãe.

— Ele está com a Mamãe, certo? — Eu perguntei a Billy enquanto ela trançava meu cabelo, esta manhã, uma longa trança impecável que miraculosamente permanece no lugar o dia inteiro. — Ele esteve todo esse tempo?

— Eu acho que sim. Os funerais não são de verdade para os anjos, criança. Seu pai iria desestabilizar todos se ele viesse. Ele sabe disso. Então é melhor se ele ficar longe. Além disso, ele quer estar com sua mãe agora, ajudá-la durante a transição.

Tucker está na igreja. Ele se aproxima de mim após a missa, fica diante de mim com as mãos entrelaçadas, olhando perdido. Eu fico olhando para o seu olho roxo, o corte em sua bochecha, o arranhão em seus dedos.

— Eu estou aqui — ele diz. — Você estava errada. Eu estou aqui.

— Obrigado — digo. — Mas não venha para o enterro. Por favor, Tucker. Não venha. Samjaza vai estar lá, e ele está furioso, e eu não quero que você se machuque.

— Eu quero estar lá — ele protesta.

— Mas você não vai estar. Porque eu estou pedindo para você ficar longe — eu sussurro. Eu diria a mesma coisa para Wendy, pediria para ela não vir ao cemitério, mas eu já sei que ela não vai escutar. Porque ela está lá, todas às vezes, na minha visão.

— Por favor — eu digo a Tucker. — Não venha.

Ele hesita então assente e vai para a fila saindo da igreja.

Então, finalmente, depois de um dia que pareceu mais longo do que qualquer outro, como se pudesse realmente ter se esticado mil anos, eu saí do carro no Cemitério de Aspen Hill. Eu pisco ao sol. Eu respiro fundo. E eu começo a andar.

Eu pensei que soubesse como seria esse dia, este dia que me encontro na última posição em um vestido preto na grama no Cemitério de Aspen Hill. Eu já vi isso tantas vezes. Mas desta vez, o tempo real, não parece o mesmo. Eu sou a Clara-do-futuro agora. Há uma dor no meio do meu peito que me faz querer cortar meu coração e lançá-lo as ervas daninhas. Mas eu suporto. Eu ando. Porque não há outra escolha senão colocar um pé na frente do outro.

Eu vejo Jeffrey à minha frente, e eu digo o seu nome.

— Vamos acabar logo com isso — ele diz.

A cor de sua gravata não importava, afinal.

Todo mundo está aqui. A congregação inteira, cada um deles, que eu posso dizer, mesmo a senhora Julia. Ninguém se acovardou.

Engraçado que acabou por ser uma profecia auto-realizável, meu sonho. Eu fico louca tentando descobrir por que Tucker não está lá. Pensando que ele está morto. Pensando que não deve haver uma força na Terra que iria mantê-lo afastado. Mas no final, ele não está lá porque eu pedi para ele não estar.

Sobrenatural 2 - Solo ConsagradoOnde histórias criam vida. Descubra agora