1 Desconhecidos ou velhos amigos?

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Por que tenho que parar? Quantos giros vou ter de fazer? Será que estou usando corretamente a musicalidade? Queria fazer essas perguntas sumirem, elas me atormentam, elas são a minha cruz, o meu peso nas costas; mas não posso reclamar, pois também são a prova do meu verdadeiro e mais puro amor. Dançar. 1, 2, 3, 4. E tudo começa novamente. Aquelas dúvidas andam impregnadas na cabeça de qualquer dançarino ou dançarina. Elas são a nossa sina. Entretanto, amamo-las.

Cabeça. Girar. Mãos. Pés. Agora os dois juntos. A música vai abaixando até sumir totalmente. A respiração ofegante, o corpo suado, os pés doloridos. Tudo vale a pena, sorrio. Vou pegar a minha garrafinha rosa e roxa. Sento no chão frio e negro, deito com a barriga para cima. Uma brisa suave brinca com os meus músculos doloridos. Simplesmente amo tudo isso. Quando danço todos os pensamentos se evaporam, o mundo fica mais leve, sinto que posso voar, nada mais importa. O coração subia, os ouvidos entupiram, o silêncio matinal era preenchido pelo som dos saltos, das piruetas, dos meus tombos e da música.

Passos soam no piso. Uma silhueta esguia entrou no meu campo de visão, pertencia a uma mulher baixinha e muito magra, de cabelos cor de fogo e coração doce.

- Aí está você. Por onde andou esse tempo todo? - Evito o seu olhar, por isso observo o que encaravam o teto branco. A mulher inspirou fundo já cansada da minha insolência. - Não precisa dizer mais nada.

- Senti necessidade. Sabe muito como sou. Eu iria explodir, sou uma bomba-relógio, estou exausta de ter que ouvir cada lamúria dela. Foi essa razão de eu estra aqui. Dançar me acalma. E outra, a apresentação é menos de um mês. Os últimos ensaios estão chegando.

- E as provas finais também. Vem... Levanta - Ela me oferece a mão, aceito o seu simples ato generosidade. Sua pele tão clara contrasta com a minha parda.

- Carol, você fala como se realmente se importasse com as provas. A nossa tia ainda está por aqui? - Pego a minha bolsa para guardar a minha sapatilha de ponta suja e a ponteira no potinho. Calço a sandália de dedos a mostra, os meus pés precisam descansar.

- Já saiu. Tenho quase certeza que foi com um homem. - Dou uma risada sarcástica. Tanto eu, quanto a Carol sabemos que isso é impossível por vários fatores, sendo um deles o longo período que Amanda passou solteira sem nunca reclamar, alegando sempre estar melhor assim.

Seguimos até o estacionamento em total silêncio. Meu coque improvisado já saiu há muito tempo, o meu cabelo castanho claro e o cabelo ruivo de minha prima voam no vento de São Paulo. Fazia pouco mais de um mês que nem uma gota de água vemos cair do céu, o ar pesado da poluição fazia doer as minhas narinas com o vento gelado. Coloco os meus fones e ouço Shape of you. Cantarolo, e a rainha das trevas, o belo apelido carinhoso que dei para ela, continua. A voz dela é aveludada, poderia ser confundida com uma sereia em qualquer sentido da palavra. Mesmo sendo magra ela se enxerga gorda, o que desperta uma raiva incondicional em mim, mas fazia isto esquecer das nossas cabeças com uma boa, ou péssima, piada. Tia Amanda dizia sempre que fazíamos a melhor dupla existente, a bailarina, não profissional, mas continuo sendo uma bailarina, e a cantora, que sonha e batalha silenciosamente, deseja subir no palco propagar todo o seu dom.

Passamos pela portaria e cumprimentamos o porteiro, um homem calvo e gordo de um bom-humor imensurável. Subimos as escadas, no meio do primeiro lance de escadas continuo sozinha. Carol vai falar com o namorado, um rockeiro magro de muito talento e poucas oportunidades, eles combinam. A rainha das trevas e seu valete. Tudo bem misturei duas coisas, mas é assim que funciona. Eles estão juntos desde o oitavo ano, algo realmente incrível, e estou solteira desde o nono. Houve uma época que temia morrer sozinha, hoje em dia só temo morrer mesmo.

V.A.JAMES Onde histórias criam vida. Descubra agora