Doze - O homem nu

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— O monstro já foi embora — disse uma voz masculina atrás de Brianna.

A menina esperava uma criatura enorme, um monstro terrível, não um homem comum. Saiu de trás da árvore em que estava, tornando-se visível ao estranho. E ele a ela.

O homem estava nu.

Ela imediatamente tapou os olhos, virando-se de costas, completamente embaraçada.

— O monstro destruiu minhas roupas — disse o homem, que tinha cerca de trinta anos, cabelo pelos ombros e barba curta. — Agora posso salvá-la.

— Mas se o monstro foi embora, você vai me salvar de quê?

O homem deu uma risada.

— Muito perspicaz, garotinha — deu um passo à frente.

— Por favor, não se aproxime, você está nu!

— Nunca viu um homem nu, meu anjo? Sabia que no céu todos andam nus?

— Mentira. No céu todos os bons se transformam em borboletas.

— E os maus, se transformam em quê? — perguntou em tom zombeteiro.

— Os maus não vão para o céu. Eles se transformam em mariposas no inferno.

Ele deu uma gargalhada. Brianna não tinha um bom pressentimento sobre aquele homem. Ele deu mais um passo. Ela continuava de costas para ele, com os olhos tapados pelas mãos.

— Não se aproxime.

— Acho que vou transformar você em uma borboleta então — ele avançou com mais rapidez, provocando pânico em Brianna, que se preparava para correr.

Mas súbito, ele parou. Brianna ouviu um gemido engasgado e o barulho de algo sendo triturado. Virou-se.

O homem nu tentava inutilmente tirar do pescoço aquele demoniozinho do tamanho de um macaco pequeno, que com uma velocidade enorme dava-lhe dezenas de mordidas por segundo, manchando o gelo de sangue. O corpo despencou no chão, sem vida, a tempo da pequena criatura saltar para perto de Brianna.

— Marduk! — exclamou sinceramente feliz.

— Não fale com estranhos, menina. Esse aí era um lobisomem.

— Lobisomem?

— Venha — disse Marduk indo nas quatro patas na direção em que o homem viera. Brianna o seguiu. — Está vendo essas pegadas? Essas pequeninas são minhas, essas aqui são suas e essas são dele... — continuou andando, seguindo as pegadas do homem. — Agora veja aqui...

A trilha de pegadas do homem sumiu, dando lugar a uma trilha de pegadas enormes, animalescas.

— O monstro se transformou no homem. Ele é uma criatura capaz de se transformar em um misto de homem e lobo, alcançando o tamanho de um urso, mas com uma velocidade bem maior e força também. Sorte sua ele ter se transformado em homem. Provavelmente queria assustá-la... antes de devorá-la!

— Mas por quê? Eu não fiz nenhum mal a ele!

— O mal não precisa de razões.

Marduk moveu-se agilmente em suas patas até uma estrada no meio das árvores.

— Você me salvou, Marduk. Muito obrigada.

— Eu sou seu guardião. Minha missão é protegê-la.

— Você é meu amigo. E agora, para onde vamos?

— Todos os caminhos levam ao céu, menina. Então vamos seguir por este. Vamos! — caminhou pela estrada, sem ter na verdade a mínima idéia de para onde estava indo.

Brianna apenas o seguiu. Confiava nele; era seu único amigo. Sabia que podia confiar em Marduk sempre que estivesse em perigo. Andaram por algum tempo calados.

Mas de repente os dois pararam ao ouvirem um rugido bestial vindo de onde deixaram o corpo do lobisomem.

— Porcaria, tem mais lobisomens. Corra, menina!

Brianna imaginou a criatura que Marduk descrevera e lembrara-se da visão estarrecedora do suicida do lago. Acompanhou Marduk às pressas, adentrando novamente as árvores.

— Por que saiu da estrada? — perguntou arfante, enquanto corria.

— Somos presas fáceis, mas na estrada somos ainda mais!

Outro rugido. Seguido por um uivo longo e sofrido. Parecia que a criatura estava lamentando a morte do companheiro. Os dois pararam e encostaram-se a uma rocha enorme, próxima a uma elevação de terra de quase três metros acima deles, uma parede natural.

— Ali — gritou Marduk seguindo a parede de terra até uma bifurcação parcialmente escondida pelo gelo.

O rugido aproximava-se em uma velocidade impressionante.

A pequena Brianna esforçava-se para acompanhar o ágil Marduk, mas suas pernas, embora maiores que as do demônio, nem de longe eram tão rápidas.

— Corra, menina, ele pode nos farejar! — disse Marduk já na entrada da bifurcação de cerca de meio metro de largura e um de altura.

Marduk avistou o lobisomem, que parara para dar um rugido de ira. Depois pousou os olhos assassinos nas duas pequenas criaturas e avançou em direção a elas velozmente.

— Vamos, menina! — Marduk apressava Brianna, que finalmente estava agachada na frente do buraco. Deu-lhe um pequeno empurrão.

O monstro deu um salto, já há poucos metros deles. Brianna já estava completamente dentro da caverna, engatinhando pela entrada, rumo às trevas que se abriam.

Marduk não entrara a tempo. Por pouco não fora abocanhado pela besta, várias vezes ao seu tamanho. Escalara a parede acima da bifurcação, para afastar ao máximo o lobisomem da menina. O monstro em um único salto já estava no topo da elevação de terra, obrigando Marduk a escalar a parede na horizontal. O demoniozinho saltou novamente para o nível mais baixo, quando a enorme sombra que caía sobre ele o fez mover-se agilmente para a esquerda, evitando que o lobisomem o esmagasse. O monstro gigante agora estava a poucos centímetros de Marduk, em uma perseguição implacável; o minúsculo demônio desviava-se das dentadas mortíferas desferidas contra ele, que ao invés, destroçavam pedaços de árvores pelo caminho.

Enquanto engatinhava no escuro, Brianna escorregou no gelo e seu corpo deslizou para baixo, como em uma rampa lisa, depois, parou de sentir o chão por um segundo no ar, antes de senti-lo novamente — e dolorosamente. A menina levantou-se, sentindo uma dor no ombro. A única coisa que pôde enxergar foi uma fraca luz que vinha da rampa por onde havia descido, que estava pouco acima de seu nariz. Tentou escalar o declive novamente, mas era escorregadio demais.

— Marduk!

Um som assustador formou-se atrás dela. Nunca havia ouvido um eco como aquele em sua vida. Virou-se, sobressaltada, tentando enxergar qualquer coisa à sua frente, esquadrinhando a escuridão sem sucesso. Imaginou que Marduk estava sendo destroçado pelo lobisomem e começou a chorar, impotente.

Para onde iria? Sem Marduk não tinha com quem contar e não teria como sair daquele buraco. Chorou, lembrando-se de sua mãe. Não tinha absolutamente ninguém no mundo naquele momento para sentir sua falta, para chorar por ela caso morresse ali mesmo. Ela estava perdida no mundo, e perdera o único amigo que tinha — mesmo que fosse um demônio.

Seu soluço ecoava na escuridão, como se trouxesse de volta a ela multiplicadas vezes o som de seu sofrimento. A dor da solidão naquele momento foi bem maior que a dor física no ombro.

Mas logo seus soluços se confundiram com outro barulho. O coração de Brianna ficou tão gelado quando a neve lá fora.

Era o barulho de cobras.

De várias cobras.



  

Brianna e o Demônio [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora