1 - A última música

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"Pássaros cantam após a tempestade, por que as pessoas não podem se sentir livres para se deleitar no pouco de sol que lhes resta?"

Rose Kennedy

Acabei adormecendo e não percebi que a bateria do celular tinha acabado. Droga. Mais de 30 ligações do Lucas. Isso nunca é bom sinal. Já me preparei psicologicamente enquanto retornava a ligação.

— Porra, Jess! O que você estava fazendo com esse celular desligado? Estou tentando te ligar há mais de duas horas!

— São 4 da manhã. Eu estava dormindo, Lucas. As pessoas costumam fazer isso nesse horário, sabia? Mas fala logo, o que o Justin aprontou dessa vez?

— Não recebeu os e-mails do Google Alerta?

— Não, Lucas, eu acabei de acordar! Desembucha logo!

— Abre o e-mail, Jess.

Não era possível! Dessa vez ele tinha passado de todos os limites! O que mais me irritava era aquele sorriso idiota na cara! Como uma pessoa pode parecer tão orgulhosa ao ser presa e fichada na delegacia?

Preferia ter continuado dormindo. Agora meu celular não ia parar nunca mais de tocar. Outro escândalo, outra semana infernal tentando abafar as atitudes inconsequentes desse garoto. Todos os sites de fofocas sobre celebridades já tinham estampado a foto de Justin Ryan vestindo o típico macacão laranja dos infratores. Dirigia bêbado e foi preso quando participava de um racha na sua Lamborghini, após voltar da boate com um amigo e uma modelo. Mais clichê impossível.

— Vem me buscar agora que você vai à delegacia comigo. — me faltava o ar de tanta raiva e tensão.

Apesar de viver discutindo com o Lucas, nessas horas agradecia por tê-lo ao meu lado. Muito mais do que um assessor, ele era meu amigo e me conhecia como ninguém. Toda vez que estava prestes a jogar tudo pro alto e mandar meia dúzia à merda, Lucas percebia e dava um jeito de me acalmar.

Meu pai sempre me falou que eu possuía personalidade forte o suficiente para lidar com qualquer um da indústria fonográfica que em sua maioria é composta por homens e muitos com o pensamento machista. Eu acreditei nele com tanta força que não me via fazendo outra coisa.

Fui criada dentro do estúdio da Capitol Records, em Hollywood. Meu pai era um famoso produtor da indústria e já havia trabalhado com nomes como Frank Sinatra, Bob Dylan, Elvis Presley e Tony Bennet. Foi vencedor de 17 Grammy's ao longo da carreira. Eu me apaixonei pela música, pela inspiração que causava, pelo amor e pela luta desses artistas que arrancavam o sangue e davam tudo de si para mostrar ao mundo o seu trabalho.

E agora estava a caminho da delegacia para livrar a cara de um playboyzinho que não dava valor nenhum à música. Se Tony Stand ainda fosse vivo ia sentir vergonha de mim. Me arrepiei ao ter esse pensamento. Meu pai jamais aceitaria trabalhar com um artista como o Justin, nem por todo o dinheiro do mundo.

Foi dentro do estúdio que descobri a minha vocação para empresariar os artistas. Tinha facilidade para lidar com as responsabilidades financeiras das bandas, controlando os custos com as receitas, garantindo os pagamentos e decidindo onde investir o dinheiro. Meu pai confiava em mim e logo me indicou para gerenciar uma das principais bandas da Capitol Records. E eu fiz os caras ganharem muito dinheiro. Eu amava o que fazia!

Era responsável pelos mínimos detalhes do merchandising. Desde a produção dos álbuns, capas dos CDs, t-shirts a adesivos para carros e outros itens promocionais de pequeno porte. Os fãs querem algo que possam levar para casa com eles. Fazia com perfeição todo o planejamento estratégico e assegurava a execução do cronograma de gravação, shows e eventos promocionais. Minha cabeça funcionava como uma máquina.

Sempre fui comunicativa e adquiri inúmeros contatos que me ajudaram a estabelecer parcerias com marcas, patrocínios, endorsements e outros serviços. Tudo isso facilitava para promover a banda, os contatos com a imprensa, a cobertura da grande mídia e das redes sociais. Eu fazia a notoriedade dos artistas com que trabalhava aumentar em 100%.

Depois que meu pai morreu, quebrei a parceria com a Capitol Records e me lancei no mercado. Foi uma briga boa e acabei trabalhando com os maiores nomes da música da atualidade.

Mas a parte mais chata e desagradável era entender como lidar com os egos dos artistas de forma a evitar confusões entre a banda. Eu detestava essa parte e era isso que sempre me fazia desistir de trabalhar com eles e quebrar o contrato.

Eu sabia o que podia acontecer trabalhando com o Justin. Não sei nem porque aceitei. Mas essa era a última vez. Estava cansada. Já não me sentia mais conectada com a música. Já não amava mais o que fazia.

Fechei os olhos e me imaginei criança de novo. A pequena Jessica Stand entrando pela primeira vez no estúdio para ver o pai trabalhar. O brilho nos meus olhos, a batida frenética do meu coração se misturando ao ritmo da música. Ah, eu sentia tanta falta disso. Mas os artistas com quem trabalhei nos últimos anos não me causavam esse encantamento. Era tudo tão robotizado, feito para fazer sucesso, com o único propósito de vender, de fazer dinheiro. Sem alma, sem coração. Não se fazem mais artistas como antigamente. Pronto. Agora eu parecia uma velha nostálgica de 90 anos.

Não dava para continuar assim, eu já não possuía mais o mesmo ímpeto de antes, a força de vontade, a garra para vencer. Nada nessa indústria me trazia paixão e isso era extremamente deprimente.

Talvez fosse a hora de me afastar. 

COM TODO MEU AMOR (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora