Minha mãe é uma abolicionista, um dia me confessou!
Antes de se casar minha mãe tinha aulas de piano, desde moça a senhora Camélia dava suas aulas de cravo. Mas um dia minha mãe deparou-se com os abolicionistas na casa de senhora Camélia e gostou da causa desde então, mentia para os meus avôs e frequentava as reuniões com a desculpa de ter aulas de piano.
Meu pai nunca soube e nem pensa nessa possibilidade, mas o que eu não entendia era o fato dela ter certo repúdio pela escrava Uzima. Ela a tratava mal sempre, se a chamava era aos berros, não tinha paciência para lhe explicar o serviço a ser executado, não gostava da presença dessa escrava dentro de nossa casa e quando a encontrava aqui dentro demonstrava insatisfação com a sua presença sem nenhum rodeio.
Isso me intrigou por tempos e eu não entendia mesmo a razão daquilo, pois nós abolicionistas não temos essa atitude, poderia ser um teatro de minha mãe para que meu pai não desconfiasse de nada, mas com os outros serviçais da casa grande não era assim.
Essa atitude dela foi me incomodando, até que um dia sem ninguém por perto interroguei fortemente sobre esse fato a escrava Dodo na cozinha.
Entrei na sala e lá estava a escrava Dodo, rodeei, rodeei, depois fui bem direto e perguntei qual a razão da atitude de minha mãe para com a escrava Uzima, Dodo a passos largos foi para cozinha só não conseguiu correr porque sua idade já não permitia tanto, mas na cozinha não teve como fugir de mim, fechei a porta e Dodo sem como fugir da conversa resolveu me contar, me pedindo segredo, por amor a Sinhá Rosa.
A escrava velha contava baixinho e tremendo, eu quase não escutava:
- Seu pai tem sua mãe por mulher, mas o que ele gosta mesmo é de se divertir com as "nêga" nova, principalmente as que têm as ancas largas, os peitos fartos como Uzima, desde que seu pai comprou essa "nêga" no mercado ele não dá ela sossego. Sua mãe fica com os olhos até vermelhos de raiva, quando é rejeitada por seu pai e trocada pela "nêga" Uzima, ela não suporta isso. Ela não tem os afagos de seu pai, ele mal encosta a mão nela.
Uma vez ela estava com tanto ódio, mas tanto ódio que me fez a proposta de que se eu preparasse uma "beberagem" com raiz forte, uma que só os "nêgo" antigo "sabe" fazer que mate sem deixar rastro e desse de beber a escrava como se fosse chá preto, ela me dava à carta de alforria e dava um jeito dos" nêgos" do mercado me levar pro quilombo.
Depois a mãe sua viu que isso tudo ia ficar complicado de explicar pra seu pai que ia acabar descobrindo porque ele é matreiro, cheio de sabedoria que só vendo.
Ela desistiu do plano.
Mas só Deus sabe como ela sofre até hoje, com isso aqui na casa grande.
-Meu pai se diverte com muitas negras Dodo. Eu disse.
-Mas essa Uzima é a preferida dele, desde que ela aqui chegou as outras "é" pra divertir, só quando Uzima está nos dias (menstruada) ou com as dores dos dias (cólicas), que ele procura as outras. Explica Dodo.
Desde esse dia então entendi a atitude de minha mãe com a escrava Uzima.
Minha mãe mesmo sem amor por meu pai, ainda sim não queria ser rejeitada por ele. Entendi porque ela ficava amargurada e chorosa às vezes sem motivo aparente, gostava de ir para a cachoeira, mandava preparar as comidas para levar e com Sálvia e Violeta, passava o dia lá, sem querer voltar, ia a passeios longos pela cidade, visitava a todos que podia até quase anoitecer ou então saía em longas viagens.
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O FILHO DO SENHOR
RomanceA história de um jovem abolicionista que se vê obrigado a ir contra o próprio pai escravagista para defender os direitos dos negros escravos e livrá-los do sofrimento. Inconformado, justiceiro, perfil aventureiro destemido e inconsequente. A histór...