XXIV - "Alguns machucados vão tão fundo que serão eternos"

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Naquela noite, eu não acordei gritando. Levantei em perfeito silêncio. Dom estava deitado ao meu lado e eu sabia que por mais que dentro da minha cabeça as vozes gritassem, se eu fizesse um único barulho sequer, acabaria despertando-o. E eu não queria isso, de jeito nenhum.

No mesmo silêncio, caminhei até a cozinha. Não tinha certeza se estava mesmo acordada ou era outro pesadelo, mas eu precisava de algo para me defender. A faca que Christopher sempre segurava em meus pesadelos estava lá. Me chamando.

Eu escondi dentro do meu short, sem me preocupar se acabaria machucada. Dessa vez, eu iria me proteger. Iria proteger Dom, meu irmão e Lizzie. Se Christopher aparecesse agora, eu enfiaria essa faca em sua barriga sem pensar duas vezes.

Me deitei novamente. Já me sentia muito mais calma.

Quando eu acordei novamente estava sendo sufocada. Minha visão estava escura e alguma coisa pesada estava em cima de mim.

— Kate, acorde — eu reconheci Dom, me chamando. Pisquei várias vezes, tentando lutar contra a escuridão. Ele era o peso que me sufocava.

— O que aconteceu? — Não consegui entender por que ele estava em cima de mim, me mantendo presa a cama.

— Você se machucou. — Eu consegui ver seu rosto e ele olhando para minha barriga. Eu estava molhada de um líquido quente. — Preciso saber que você está acordada antes de soltar — pediu. Percebi quanto esforço ele estava fazendo. Dom também estava com dor.

— Estou acordada — garanti. Ele soltou as pernas das minhas e caiu ao meu lado na cama. Eu notei que estava molhada de sangue. Minha barriga encharcada. — O que aconteceu?

— Eu acordei com você chorando de dor — explicou. — Quando eu tentei ajudar, você me atacou.

Então aquele sangue todo não era só meu.

— Você está bem? Eu te machuquei? — Eu não podia me preocupar com a minha dor, não agora.

— Foi só de raspão, está tudo bem. Seu corte é pior.

Eu relaxei por um segundo. Se eu tivesse machucado Dom, nunca me perdoaria.

— Me deixa ver. — Puxei a mão que ele estava segurando contra o peito. O corte não era muito fundo, mesmo assim me senti culpada. Eu poderia tê-lo machucado de verdade.

— Está tudo bem. — Ele puxou a mão de volta. Enrolou uma camiseta no corte. — Mas preciso levar você ao hospital.

— Hospital? — Eu finalmente reparei na minha barriga. Eu tinha alguns centímetros de corte, um pouco mais fundo que o na mão de Dom.

— Você vai ficar com uma cicatriz bem grande se não cuidarmos direito — ele avisou.

— Eu não vou ao hospital. Eu não posso. Vão perceber que eu... que eu estou ficando louca.

— Kate, você não está louca — ele parecia irritado em ter que se repetir. Eu discordava totalmente.

— Você sabe como costurar, não sabe? — perguntei. — Eu tenho linha e agulha na primeira gaveta.

— Kate, vai doer — ele avisou.

— Tem uma garrafa de vodka na cozinha.

Eu estava determinada a não ir a nenhum hospital. Quando Dom voltou com todos os itens que ele iria precisar, eu quase fraquejei.

Depois de alguns longos goles, a dor estava ficando mais suportável, enquanto Dom limpava o local com soro fisiológico e passava a agulha na minha pele.

Eu aguentei até o final, sem reclamar. Qualquer dor que eu sentisse, eu merecia.

Deixei Dom trocar nossas roupas e o lençol. Ele limpou sua mão e fez um curativo antes de se juntar comigo na cama. Eu não conseguia entender como ele podia gostar de mim, mesmo quando eu estava claramente perdendo minha mente. Temi que em alguns meses eu nem me reconhecesse mais. Alguma coisa estava muito errada comigo.

Dom me encheu de remédios. Ele disse que eu acabaria com uma infecção se não me cuidasse. Eu não discuti. Os remédios me doparam de um jeito que eu não conseguia sonhar. Dopada, as vozes também não apareciam.

Quase podia me sentir bem.

— Eu quero que você vá embora comigo — ele pediu. Eu estava um pouco mais lúcida, o ferimento estava começando a melhorar.

— Embora?

— Para a Itália. Case comigo.

— Casar? — Dom não podia estar falando sério.

— Eu sei que não é o que você queria. Mas eu preciso de você comigo e sinceramente não quero deixá-la aqui, sozinha.

— Eu não vou me casar com você. Não por essas razões. Não por que eu estou ficando louca e você quer tomar conta de mim.

— Você está entendendo tudo errado. — Ele me puxou em seu colo. — Case comigo porque eu te amo. Venha para a Itália comigo porque eu quero você na minha vida. Porque eu quero cuidar de você.

— Eu não posso ir — admiti. — Eu te amo, mas não posso. Você não entende. Minha vida toda estive presa em uma vida que não era a que eu queria. Eu não posso voltar atrás. Se eu for com você para a sua casa, vou ter que fazer parte do seu mundo. E eu não quero isso.

— Como você sugere então? Eu não vejo outra saída.

— Eu não sei. Achei que ia convencer a Anna a deixá-lo sair, mas não deu certo. Agora eu não estou nem sã o suficiente para comandar a empresa e ter pelo menos uma moeda de troca.

— Kate... — Ele ficava bravo todas as vezes que eu dizia estar ficando louca.

— É verdade, Dom. Você tem que aceitar. Isso não é normal. Os sonhos, as vozes. Alguma coisa está muito errada comigo.

— Por isso mesmo que eu quero levar você comigo. Eu não acho que você é louca. Só acho que está estressada. Ficar aqui claramente não está fazendo bem para você.

— E fazer parte da máfia é minha salvação? — Eu sabia que iria magoá-lo, mas era verdade. Não queria mais fazer parte desse mundo.

A máfia nunca me deu nada de bom. Tirou minha mãe de mim, me fez ser criada por um monstro, não me deixou conhecer meu real pai, afastou meu irmão de casa e me encheu de um dinheiro sujo, que nunca me trouxe nenhuma felicidade real.

Eu não iria, de jeito nenhum, voltar para essa vida.

— Não posso ir, Dom. Sinto muito.

Ele não entendia. Eu podia ver em seu rosto.

— Eu vou ter que voltar, em breve — avisou, claramente magoado comigo.

— Eu entendo.

— Não quero deixá-la aqui. Não assim.

O que eu vi em seus olhos castanhos, me machucou mais do que qualquer coisa poderia ter feito. Não era só amor. Ele estava com pena.

Dom não queria me deixar sozinha por que eu estava quebrada por dentro e ele tinha dó de mim.

— Não posso... — Recuei. Não podia aguentar aquele olhar. — Tenho que sair. Não posso ficar aqui.

Peguei minhas chaves e saí apressada.

— Kate, espere — ele tentou me chamar, mas eu já estava longe.

Entrei em meu carro e dirigi sem nenhum rumo.

Ele estava certo em ter pena de mim. Eu estava realmente quebrada.

Não podia viver a vida que ele estava oferecendo, mas também não conseguia deixá-lo ir.

Eu precisava dele ao meu lado, isso eu sabia. Mas como eu poderia viver em meio a algo que já me tirou tanto. Como eu poderia viver com ele, se Dom estava tão afundado em tudo que eu precisava fugir?

Minha visão escureceu novamente, como se eu estivesse em mais um pesadelo. Travei, por alguns segundos. Meu pé pisou mais forte no acelerador.

Eu consegui ver dois faróis vindo em minha direção antes de desmaiar.

Pura Luxúria (Completa) - Série Criminosos Irresistíveis - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora