TASHA REYMES
Ilha Terceira.
A repetição das mesmas rotinas diárias durante décadas podia tornar a vida aborrecida e saturante. Tasha sentia-se aprisionada no arquipélago onde nascera, permitindo-se acariciar pela ideia de partir, mesmo que fosse contra a vontade dos progenitores. Alertara-os constantemente e estava decidida, incapaz de continuar a observar as pessoas da sua geração a definhar com a idade ou a deixaram-se ceifar pela doença, enquanto o envelhecimento do seu corpo cessara mal completara os dezoito anos. Sim, na altura aceitara "Despertar", se soubesse as ramificações que essa decisão imatura acarretaria não a teria tomado.
Sentada numa das colinas verdejantes da Ilha Terceira, apoiava a tela nos joelhos cruzados, desenhando o panorama recheado, manuseando, habilmente, o lápis de carvão. A mala de couro, onde guardava as tintas, jazia sobre um monte de Lispidis e Magaelvas, ervas típicas da ilha. Usava o carvão para esboçar as formas no quadro, a planície, uma extensão do oceano, onde se via nitidamente, na distância, duas ilhas, separadas por poucas milhas.
O céu demonstrava um azul pálido, a tarde estava tão agradável quanto uma canção de primavera, o sol queimava mas as brisas frescas atenuavam a sua potência, equacionando a perfeita harmonia entre ambos. Um punhado de gaivotas planava pelo céu imaculado, iniciando um declive, no voo, em direcção ao oceano. Deve ser a hora da pesca, pensou Tasha ao perder as aves azuis de vista, ao perfurarem as ondas com os longos bicos dourados. Saíram somente uns minutos depois de apanharem alguns peixes pequenos.
Uma criatura diminuta desfilou diante de Tasha, saltitando de planta em planta, devorando-as até a raiz, o ruído e aparato que causava durante o acto distraia e enjoava a mulher.
- Podes fazer pouco barulho? - Refilou num tom avarento. - Estou a tentar desenhar! - O ser de forma humanóide travou a refeição, atentando nela, seguiu-se um silêncio estranho. Regressou ao seu lanche, causando ainda mais aparato. - Estás a troçar de mim? - Deixou o tom escurecer. A criatura esboçou uma careta, instigando-a a oferecer-lhe uma lição de boas maneiras, Tasha assoprou contra a planta azul onde a esta residia, varrendo-a contra o solo, desguedelhando o cabelo lambido pelo fogo. Não conteve uma pequena gargalhada.
- Tasha és má! - Lamuriou a fusão de uma voz infantil e o zumbido de uma abelha. Um par de asas, revestidas penas purpúreas, romperam do dorso do ser, agitaram-se freneticamente e esvoaçou até ficar diante do rosto da agressora. Colocara os membros em miniatura na cintura, encoberta por uma saia de ervas.
- Eu?! -Tasha fingiu estar ofendida pela acusação. - Eu não fiz nada, deves ter-te desequilibrado, Salmaela.
- Desequilibrado?! - Libertou, incrédula. - Uma Skarch como eu? - A temperatura subiu, um efeito dos nervos agitados da Skarch, incapaz de restringir, por vezes, o seu efeito no ambiente. - Não sou desastrada! Atacaste-me sem razão nenhuma. - Tasha acabou por pedir desculpa para a acalmar. Salmaela, esquecendo o assunto, arqueou as sobrancelhas rectas. - Que se passa Tasha, sinto que estás perturbada.
- Não quero pensar nisso. - Retorquiu rapidamente, sem emoção. Salmaela aceitou a resposta, desaparecendo pelo prado, exercitando as asinhas, juntando-se às outras dezenas, talvez centenas, de Skarch que infestavam o local. Um bando de brisas caiu sobre as planícies, erigindo uma nuvem de pólen, causando a Tasha uma alergia momentânea, espirrou.
Tornou a esconder-se na arte, servia de porto seguro contra o oceano de mágoa que a tentava afogar. Perdia-se na concepção de retratos perfeitos, esquecendo o resto, sucessivamente escolhia as cores que melhor reflectiam o seu estado de espírito para os enfeitar, ignorando a coloração natural do ambiente. Era o seu toque de artista.
Enfiou a mão, com as unhas pintadas de cores vivas, na mala, tacteando o material espesso e rugoso até pegar no pincel e em dois frascos redondos. Um deles acomodava uma tinta verde escura, alcançada ao juntar umas pingas de água, a raiz de Jazi* e uma flor verde. No outro jazia uma mistela cinzenta.
Banhou o pincel de cerdas macias, arrancadas dos Valijes* da Ilha Terceira, na primeira tinta, passou a ponta molhada pelo esboço dos penhascos, pintou o oceano de cinzento e tirou a tinta vermelha para o céu.
Um cheiro fátuo tomou conta do ar, sentiu o peito a apertar e um desespero irracional gelou-lhe o sangue: era um mau pressentimento. Tinha-os ocasionalmente, um dia acordara com a mesma sensação, acabara por cair do seu Vongreal, penetrando no Mar Estreito, quase morrera nessa manhã.
Um rugido ensurdecedor ribombou pelo ar, estremecendo a terra. Foi incapaz de descortinar o emissor, o ruído parecia ressoar por todo o lado, dando a sensação que o próprio mundo gritava.
Tasha largou os utensílios artísticos, tentando arranjar equilíbrio no solo oscilante mas tropeçava a cada tentativa, decidiu cobrir os ouvidos para atenuar o impacto do barulho, este era tão poderoso que lhe magoava a audição. Incapaz de atribuir uma razão à ocorrência, deixou-se influenciar pelo receio do desconhecido, quase perdendo o fôlego.
A alguns metros havia uma encosta que levava a umas falésias com mais de trinta metros de altura, cujas pontas começavam a desfragmentar-se, originando uma chuva copiosa de rochas em direcção ao mar. Os Skarch voavam desorientados pelo pânico, os insectos, abelhas, zangões, libelinhas, copiaram a atitude, assim como os bandos de aves que preenchiam os céus. Salmaela planou até a mala castanha de Tasha, refugiando-se no interior.
Dezenas de Vongreals voaram para longe da Quartest, onde habitavam: uma das duas ilhas diante de Tasha, um local revestido por um mar de árvores de vinte metros, grutas e um ecossistema variado.
A espécie de terramoto foi-se embora da mesma maneira que surgiu: subitamente. Tasha suspirou de alívio, o nervosismo fizera-lhe transpirar e o coração permanecia a bater desenfreadamente. Deixou-se cair no tapete de relva, a maioria dos Skarch ou copiou a atitude ou fugiu para longe, assim como os animais.
- Pela Mãe, o que foi isto? – Inquiriu ao vazio, enquanto se recompunha. Acedeu à ligação, achando a mente do seu Vongreal. – Raidre vem buscar-me. – Perdera a serenidade necessária para desenhar.
- Tasha, o que foi isto? – Perguntou uma voz animalesca num canto da sua mente.
- Não sei mas o Padin deve saber. Ele sabe sempre tudo. – Recolhia os instrumentos para dentro da mala, de onde saíra Salmaela a tremer. Avistou o Vongreal na distância, ansiosa por regressar a Vongraida, desejou que a cidade não tivesse sofrido danos. Adorava, acima de tudo, transpor para a tela a beleza da sua cidade natal.
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A Canção Da Natureza(UM CAPITULO POR SEMANA)
Fantasía1 LUGAR NO CONCURSO RED FOX EM FICÇÃO GERAL. 2 LUGAR EM FANTASIA NO CONCURSO WATTPAD GOLD TALENTS. 2 LUGAR EM FANTASIA NO CONCURSO PARTO MENTAL. "O mundo reformula-se com a queda da areia na ampulheta do tempo, adaptando-se às necessidades da nova...