CEDRICA II

175 61 49
                                    

FINAL DA SEGUNDA PARTE

A manhã entranhava-se no Castelo, a névoa da geada atravessava entre as grades, aconchegadas em camadas de gelo, e assombrava os corredores, vazios àquela hora.

Alivida liderava a procissão, cerca de uma dezena de raparigas esqueléticas marchavam detrás de si, organizadas numa fila respeitosa e silenciosa. Tinham como destino o edifício a torre mais afastada do edifício, onde se realizavam as preces matinais. Se não demonstrassem, regularmente, a sua devoção para com a Vontade esta não as abençoaria.

Cedrica nem prestava atenção aos corredores que já percorrera milhares de vezes, ignorava as paredes tingidas de negro, as janelas redondas e as estátuas, revestidas por um cinzento lustroso. Estas esculturas pareciam fazer parte das paredes, posicionadas entre cada porta, esboçadas com o formato de cavaleiros, totalmente engolfados em armaduras, conhecidos como os sentinelas do Castelo. Um rumor pulava de boca em boca, entre as Irrelevantes, referindo que essas estátuas ganhariam vida para proteger o Castelo, se confrontadas com uma grande ameaça, seria a própria Vontade a controlá-las para defender as suas protegidas. Cedrica acreditava nessas histórias, sabia que Emilia teria outra teoria. Inquiria-se constantemente sobre a razão de Emillia ter uma conexão tão profunda com a Vontade, geralmente quanto mais se acreditasse nessa força regente maior era o seu poder. Era inexplicável a sua amiga ser particamente ateia e, ao mesmo tempo, ser a única a rivalizá-la em termos de habilidade pura.

Cedrica massajava os braços arrepiados, tentando ignorar o frio perpetuamente presente naquele lugar, segundo as Sábias servia para as relembrar que jamais se podiam habituar ao conforto, pois a vida como embaixadoras da Vontade enfiá-las-ia em extensas grutas de problemas. Infelizmente, essa doutrina de estarem constantemente preparadas para o pior levava a umas quantas casualidades das Irrelevantes, quer fosse devido à alimentação escassa ou à temperatura gelada.

Cada passada fazia-lhe doer os pés, como se caminhasse sobre um tapete de pregos. Estes ainda ardiam devido à noite anterior, decorados com algumas feridas em carne viva, revestidas por uma camada negra pois não tivera água para os lavar e o sangue escurecera. As restantes raparigas seguiam à sua frente, mirando somente o solo de Lackium, a pedra escura e refulgente, achada na cordilheira do mesmo nome, com que o castelo fora moldado.

Queria travar a marcha, esfaqueada pela fome e a mágoa. Emillia provavelmente captara a sua angústia, dando-lhe a mão, sussurrando ao seu ouvido:

- Temos que continuar, Cedri. Paramos e somos castigadas! - Não demonstrou o menor receio no tom.

Subitamente, uma das inúmeras raparigas, cujos cabelos demonstravam a cor da ferragem e viam-se tão ásperos quanto a palha, caiu subitamente. Tentou erguer-se, obviamente carenciada da força necessária para tal, apenas se erguia até os joelhos, até tornar a cair e lamber o piso.

- Não... - Soluçou, no meio de uma tosse enfraquecida. - Não consigo continuar Sábia Alivida. Tenho tanta fome! - Ninguém parou, nem prestou atenção à suplicante, apesar de horrorizadas pelo que se avizinhava. Um grito agonizante assombrou o corredor sinuoso, o qual parecia interminável. As raparigas nem olharam para trás, sabiam que se o fizessem veriam a rapariga agarrada ao estomago, contorcendo-se e esperneando. Era a tortura favorita de Alivida, acedia à Vontade e fazia a vítima ter a sensação de que lhe esfaqueavam a barriga. Cedrica já sofrera esse castigo, não invejava a pobre coitada. Ficou com a garganta seca só de pensar na avalanche de dor que engolia a sua colega, a qual começava a choramingar.

- Levanta-te imediatamente, Darah! - A voz seca de Alivida congelou o ambiente. - Caso contrário não tornarei a ser tão cortês. - Cedrica continuava a escutar os gemidos da jovem, sabendo que ela provavelmente se encontrava demasiado fraca para se erguer. Amaldiçoou a sua cobardia, gostaria de se intrometer entre a Sábia e Darah, a caída, mas seria severamente castigada se optasse por tal iniciativa, a razão por que ninguém intervinha. As Sábias eram demasiado rígidas para com as Irrelevantes, ocasionalmente ponderava se a Vontade desejava que agissem assim. As Cava'en'dish eram as Sábias que patrulhavam o continente, salvaguardando o bem-estar dos cidadãos e promovendo a paz, custava a crer que tinham um treinamento tão desumano. Ou talvez as Sábias que ficavam no Castelo, para exercerem a função de instrutoras, Sábias-menores, estivessem somente carrancudas porque não se tinham tornado Cava'en'dish, pois não era uma honra destinada a todas. Ao revés ficavam acorrentadas a uma vida no Castelo a ensinarem Irrelevantes.

Enquanto dezoito Irrelevantes se encontravam paradas, outra cortou a fila perfeita, saindo do lado de Cedrica e avançado para onde Darah se encontrava. Cedrica somente pensou como a atitude da amiga contrariava as palavras que proferira há instantes. Todas olharam, quando não o deviam, vendo Emillia a ajoelhar-se junto de Darah, fitando a jovem que fora magoada e cujo traje, outrora branco, ficara cinzento devido à sujidade, ocasionalmente decorado por uma mancha mais escura. Via-se recheada de suor, com a tez empalidecida.

As Irrelevantes libertaram esgares horrorizados, ao repararem que Emillia subira o rosto, olhando Alivida directamente nos olhos, a qual virara subitamente o rosto em formato de coração. Ambas se encararam.

- Para onde pensas que estás a olhar Emillia, já foi aplicado o castigo supremo a irrelevantes que tiveram a mesma acção. - Nem queria pensar que havia a menor possibilidade do Castigo Máximo ser aplicado à sua amiga. - Como é que uma criatura inferior como tu se atreve a olhar uma Sábia nos olhos? - Reforçara a voz com uma frieza intimidante.

- Não serei uma Irrelevante por muito tempo. Terei o Teste em breve, recorda-se? - Emillia, não era a típica Irrelevante de porte fragilizado, permanecia com a forma do peito bem saliente debaixo da veste e a quantidade certa de carne escondia os seus ossos, um sinal castanho decorava-lhe o canto do lábio.

- Que te dá tanta certeza de que o passarás? - Demandou Alivida, cujas sandálias roxas batiam contra o chão, guiadas pelo tique nervoso dos membros inferiores.

- A minha determinação é a minha certeza!

- Não existe tratamento preferencial dentro destas paredes, devias sabê-lo melhor que ninguém! - Declarou a Sábia. Emillia tombou de joelhos, segurando a barriga. Cedrica, era incapaz de pressentir quando alguém acedia a Vontade, porém sabia que Alivida utilizava a sua Influencia para domar a sua colega de quarto. O verde brilhante e desafiador que revestia a iris de Emillia jamais se esmorecera, talvez até se tivesse tornado mais intenso. Foi incapaz de sentir algo mais senão admiração para com a Irrelevante que permanecia a olhar directamente para o rosto da Sábia-menor.

- Pára de me olhar, inferior! - Rosnou uma Alivida enlouquecida, o seu grito foi demasiado intenso, capaz de se escutar até no andar inferior. Cedrica permanecia a procurar por coragem, queria ajudar a amiga.

O eco do chocalhar de uma sola de madeira com o solo fez a Sábia-menor terminar o castigo. Uma mulher com vestes pomposas, típico de uma Sábia, aproximou-se, libertando um esgar de horror ao reparar na figura tombada de Emillia, cuja consciência se desvanecia:

- Alivida, estás louca. O que dirá a Grande sábia sobre isto? - Inquiriu a mulher, cujos cabelos negros eram entrelaçados com uma renda colorida.

- Lammia, no grande Castelo e debaixo do olhar eternamente vigiante da nossa deusa não existe tratamento preferencial. - Retorquiu Alivida. Lammia preparava-se para argumentar quando Cédrica se sentiu agoniada.

O castelo inteiro começou a tremer.

Comentem e votem se gostarem.

Alguma duvida ou correcção também agradeço que me digam.

A Canção Da Natureza(UM CAPITULO POR SEMANA)Onde histórias criam vida. Descubra agora