BARDOS

201 76 78
                                    

A dor esfarrapava-lhe a consciência, o braço ardia como se o retalhassem, dando-lhe a sensação que o membro se soltaria a qualquer instante. Gemia e contorcia-se, enquanto um par de soldados possantes o arrastavam, antes que o Nevão os consumisse. Enlouquecido, devido ao ardor, ainda rezou à Vontade para o salvar, apesar de não ser um homem religioso. O desejo que o movera a vida adulta inteira passara de um plano por delinear para uma súbita realidade: a morte de Gregory Clove.

Atravessaram a fenda no muro, trespassando o pátio da aldeia, ladeado de habitações modestas, decoradas de branco. Os soldados que o seguravam deixaram-se tocar pela perplexidade ao depararem com o cenário sangrento. Apesar do Nevão distorcer a paisagem, avistavam-se dezenas de corpos desmembrados, e meio devorados, espalhados ao longa da neve, banhada de vermelho. 

- Que visão da Dizimação! – Praguejou um dos soldados.

- Aquela besta fez tudo isto? – Adicionou outro, ninguém vociferou a resposta óbvia.

A tempestade branca caiu com vigor, no mesmo instante em que os soldados se abrigaram no interior das cabanas. 

Bardos foi encostado a uma parede velha e escurecida, um vestígio de podridão, categorizou aquela madeira como frágil. Inquiriu-se se a habitação os protegeria do temporal, dando como possível a possibilidade de se despedaçar em mil pedaços. Sempre funcionara dessa maneira: premeditava a desgraça e jamais se surpreendia quando ela chegasse. O vento estremecia a estrutura, incitando as telhas a cantarolarem, o que oleava a lareira da sua conjectura.

O ardor permanecia a incapacitá-lo, as lágrimas saiam-lhe, o mundo rodava e mal coleccionava fôlego.

Andrej entrou pela porta, fechando-a rapidamente.

- Capitão. – Soltaram todos menos Bardos. A casa modesta, decorada com uma só cama colocada num canto, uma mesa e quatro cadeiras no seu centro, via-se a abarrotar, albergando dezenas de soldados.

 Neve e sangue decoravam a armadura de Andrej, o ultimo não lhe devia pertencer pois não demonstrava o menor ferimento. O soldado jovem mas experiente surpreendera Bardos, fora o único a reagir à investida inesperada do monstro, como se a tivesse pressentido. O sujeito era imprevisível, jamais actuava como esperado, tornando-se a única pessoa que Bardos era incapaz de prever, isso levava-o à loucura, pois deixava a sua vida ser regida por um lema muito simples: não podes manipular alguém se desconheces o que fará.

Andrej retirou o elmo, um tufo de cabelos húmidos, lambidos pelo ouro, caíram-lhe até a meio do longo pescoço:

- Estava a ver que não me safava! – Revelou, aliviado.

- Quando o vimos a enfrentar aquela besta, pensámos que... - Acrescentou um militar de meia-idade, incapaz de vociferar a crença popular. Todos tinham achado que a criatura o devorara, uma suspeita que agora se revelava incorrecta, infelizmente para Bardos.

 Andrej Brier pertencia a uma casa importante. Com a morte de Gregory e, se tudo corresse bem, Darren Clove, Andrej seria favorecido por muitos Ventura para se tornar o lorde de Ferr. Isso jamais poderia suceder, a mente do homem começou a trabalhar, engendrando um plano para evitar semelhante possibilidade.

Deu com Andrej a fitá-lo.

- Bardos, o teu braço. – A emergência implantou-se no rosto quadrado de Andrej, entoou as palavras que o sujeito ensanguentado não queria ouvir. – Temos que o cortar! – A voz do herdeiro da casa Brier soava fria, nada a fazia tremer.

Bardos soltou uma longa gargalhada, todos o fitaram, temendo que a dor, aliada à perda de sangue, o tivesse feito enlouquecer:

- Saí para ajudar a salvar o irresponsável de Darren. Acabo sem lorde e com o braço pendurado pelo osso, a situação é tão trágica que apenas me consigo rir. – Vestiu a pele de vitima, sem se atrever a olhar para o membro. – Nem temos álcool para me ajudar a esquecer esta dor horrível. – Rugiu, o seu temperamento começava a alterar-se.

- Segurem-no. – Acrescentou Andrej, Bardos reagiu, procurando erguer-se para fugir. Sabia ser necessário, porém a possibilidade de se esvair em sangue, ou a dor ser insuportável, colara-se aos seus pensamentos. O medo fez-lhe querer tentar a sua sorte no Nevão, recusando a dura realidade: encontrava-se prestes a perder o braço direito, o qual utilizava para tudo. Afogado em suor, foi placado por cinco homens, prenderam-no com tamanha força que mal conseguia pensar.

Andrej referiu que não tinham maneira de criar fogo mas prosseguiria com o acto, mesmo de lâmina fria. Uma loucura aos olhos de Bardos, combatendo para não ceder à exaustão e perder a consciência, receava, acima de tudo, ficar com uma infecção depois do corte.

Um dos soldados ofereceu uma espada a Andrej. Este ia-se aproximando, cada passada sua incrementava os nervos de Bardos. Era das únicas coisas que realmente admirava no homem loiro, segurava as rédeas da responsabilidade da situação em que se encontrasse, actuaria como carrasco se necessário, jamais ocultando-se detrás dos seus homens, ao contrário da maioria dos Ventura. 

Andrej, ao lado de Bardos, deixou cair a lâmina e este gritou, enquanto rezava para que Darren tivesse perecido no ataque à aldeia 0e finalizava o seu plano para se livrar de Andrej. 

A Canção Da Natureza(UM CAPITULO POR SEMANA)Onde histórias criam vida. Descubra agora