CEDRICA II
Em Edição:
Cedrica forçou-se a sair do pesadelo recorrente. O veneno chamado pavor fluía pela sua corrente sanguínea e apressurava-lhe o batimento cardíaco. Ergueu-se da cama, tremendo, assolada por ferradas nos músculos, efeito secundário de dormir constantemente na pedra e o fazer em posições pouco recomendadas. A presença do ar gélido assemelhava-se a ter um pedaço de vidro a roçar-lhe na pele.
Os raios da madrugada transpassavam a janela gradeada do seu quarto. Desesperou ao constatar que não conseguira descansar decentemente. A sonolência do cansaço permanecia embrenhada em si. Um dia em Castelia sem o repouso adequado assemelhar-se-ia a viver durante a Longa Escravidão!
Atentou na cama desocupada de Emilia, custando-lhe a aceitar o sucedido, se se tivesse em conta a identidade da progenitora da referida ainda parecia mais inacreditável. Após o Abalo, Emilia vira-se mergulhada em problemas. Desafiara a autoridade de uma Sábia-menor, a maior afronta que qualquer Irrelevante poderia fazer. Alivida tentara exercer o castigo máximo: executá-la. As outras Sábias-Menores não o tinham permitido, levando o assunto a concelho, onde chumbara com apenas três votos a favor e nove contra. Cedrica ficara aliviada pelo resultado e por, na votação, ter-se decidido a permanência da sua colega de quarto no estabelecimento. Infelizmente, e para choque geral, Emilia recusara-se a continuar ali e partira do Castelo. A Grande-Sábia ficara tão voraz quanto um Caxim e furiosa com Alivida.
Preocupava-se com a amiga. O mundo era um local perigoso, especialmente para uma rapariga só e fragilizada. Para piorar a situação necessitaria de caminhar diversos quilómetros, em terreno rochoso e assolado por brisas glaciais, até chegar à próxima povoação.
Na parede do quarto jazia um prego, onde costumava a pendurar o seu vestido, cujo perfume era tão intensamente atroz que fazia arder o interior das suas narinas. Tirou-o delicadamente, do suporte quase imperceptível, para não o rasgar. Susteve a respiração ao sentir a coisa imunda encaixar-se no seu corpo. Pensou em como deveria tresandar, recordando Gastev, o prometido que deixara na sua aldeia natal, juntamente com a sua família, vida antiga e aspirações. - Abandonei-os para isto?! Para não passar de uma pobre coitada mal cheirosa?! – Inquiriu-se, no interior da sua mente, onde a semente da dúvida nascia. As lições de Alivida tornavam-se cada vez mais ásperas, depois do incidente, a Sábia-menor tornara-se ainda mais exigente e ríspida. Cedrica começava a temer ser incapaz de se tornar uma Cava'en'dish e, por aquele andar, iria perecer num dos treinos da sua instrutora, antes de ter oportunidade de tomar o Teste Final. – Não, não vim aqui para falhar! – Conjurou determinação, entoando as palavras de um dos livros que a obrigavam a ler uma vez por semana: O testemunho de Véléus.
- Apenas podes escalar uma montanha se o ambicionares e, de facto, tentares. Quem se perde a admirá-la, nunca a escalará. - A montanha figurativa representava o obstáculo e trajecto que teria de escalar até se tornar a Grande Sábia. Agora que já começara a sua subida recusava-se a abandoná-la.
Bocejou, ainda fatigada, preparando-se para o que ia ser um dia longo e complicado, idêntico aos restantes. Assim era a sua vida.
***
As baforadas nocturnas despenteavam-na. Respondia ao tentar ajeitar o penteado, apenas para permanecer completamente emaranhado. Desistiu, enervada por ter, constantemente, a franja a enevoar-lhe o campo de visão.
Alivida, encaixada num dos seus típicos trajes escandalosos, uma veste tingida de brilhante e que caia até aos seus joelhos, marchava pelo corredor mais largo e longo do castelo. O Abalo marcara a construção de meio século: causara a derrocada de algumas paredes, deixando, ocasionalmente, o corredor exposto ao clima exterior, contribuindo para o decréscimo da temperatura, já antes insuportável. O Abalo ocorrera há uma semana e, desde aí, o frio já clamara a vida de sete Irrelevantes.
A Sábia-menor guiava-a até à torre onde realizavam o seu treino diário quando um sonido perturbador eclodiu algures e propagou-se a seu redor. O sonido estridente e irregular pertencia a uma voz: alguém gritava de tal maneira que parecia que tinha avistado um dos Condor. Cedrica travou a passada, atónita por a sua superior permanecer a marcha, com os braços detrás das costas, ignorando o ruido. A mesma mulher, na distancia, insistia em gritar, totalmente aflita. Queria olhar a mulher diante de si e inquirir-lhe se não seria melhor ir averiguar o ocorrido mas uma Irrelevante só se poderia dirigir a uma Sábia para responder a uma pergunta dessa mesma.
- Queres ir ver o que se passa? – Demandou Alivida, que parara mas continuava de costas virada. – Vai! – Ordenou. Cedrica agradeceu, esboçando uma vénia cortês, esfaqueada por um mau pressentimento. Depois, correu na direcção dos gritos.
***
Cedrica seguiu o som, até chegar, com o ar escapulir-se dos seus pulmões débeis por natureza, diante de uma enorme brecha na parede. Daí entrava o vento no corredor, chicoteando a sua cara. Avançou para a beira do buraco, por onde perscrutou montanhas e o campo desolado e pálido na distância. Encontrava-se cerca de dez metros acima do vale rochoso que circundava o Castelo. Alguém que tropeçasse ali cairia para a sua morte.
Encarou meia dúzia de Irrelevantes a fitarem a fenda no tecido do Castelo, com os olhares marejados de lágrimas.
– Nenhuma delas vem. Estou farta de gritar mas nada. As Sábias não vêm. Não querem mesmo saber de nós. – Choramingou uma rapariga de cabelos lisos e figura esquelética. Conhecia-a, chamava-se Fola.
- O que se passou? – Inquiriu, Cedrica. Aproximando-se do buraco, o assobiar das rajadas incrementava o volume. Fola apontou para a fenda, replicando: – Ela atirou-se. – Cedrica, agachou-se diante da fenda, espreitando para baixo. O cabelo tapava-lhe a visão, mas bem no fundo do precipício, na terra recheado de rochas, pareceu avistar... Não, não podia ser.
- Qu... que... quem? – Murmurou, entre engasgos, cambaleando para trás.
- Darah. – Acrescentou outra das Irrelevantes. – A Darah atirou-se daí. – O peso da constatação quase lhe quebrou o coração.
- Não. – Murmurou, preparando-se para analisar de novo o corpo a demasiados metros de onde se encontravam. Conhecia Darah, aliás era uma das grandes ironias do destino. Fora Darah quem Emilia defendera das atrocidades de Alivida. Essa atitude levara Emilia a abandonar o local onde estava há três anos, tudo isso apenas para a rapariga que defendera atirar-se para a sua trágica morte.
Olá, antes do mais gostava de agradecer a quem tem acompanhado a minha história e me ter ajudado a chegar às 5k de leituras. Lamento pelo mês e meio que estive ausente mas nao volta a suceder, já é a terceira semana consecutiva que consigo publicar e é só para manter. Espero que gostem deste capitulo. Não se esqueçam de votar e comentar.
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A Canção Da Natureza(UM CAPITULO POR SEMANA)
Fantasy1 LUGAR NO CONCURSO RED FOX EM FICÇÃO GERAL. 2 LUGAR EM FANTASIA NO CONCURSO WATTPAD GOLD TALENTS. 2 LUGAR EM FANTASIA NO CONCURSO PARTO MENTAL. "O mundo reformula-se com a queda da areia na ampulheta do tempo, adaptando-se às necessidades da nova...