Esperança

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24 de julho de 2022

Faz algum tempo desde a minha última escrita no diário. Hoje ousei gastar um pouco da energia do gerador e liguei o computador para entrar na internet. Qual foi minha surpresa ao conseguir entrar na página do google! Bem, ela é uma das únicas que consigo acessar. Algo estranho que notei, dos poucos sites que consegui acessar todos tinham seus servidores no Brasil, não sei se isso significa algo mas não deixa de ser curioso, contudo, estou me adiantando.
Como aconteceram muitas coisa, é melhor eu começar de onde parei na última anotação.
Ao ver a garota saindo da casa da frente, desci imediatamente ao primeiro andar. Já preparados ao lado da porta, vesti a jaqueta de couro, pus o capacete, agarrei o martelo e corri para fora, cuidando para não fazer barulho, deslizei até as grades do portão e espiei os arredores. A ultima coisa que queria era ser agarrado por algum deles, como quase acontecerá da ultima vez. Mas estava tudo sossegado. As ultimas criaturas da rua oscilavam de um lado para o outro, rosnando e batendo no muro do vizinho da esquerda...
Olhei então na direção da garota. Agachada diante do portão ela olhava para mim, vestia o mesmo casado felpudo azul e segurava o revólver ao lado do corpo. Parecia menos agressiva, disposta a dialogar. Acenei e ela retribuiu o gesto. Então com o dedo ela indicou o meu lado da rua, não entendi a princípio fiquei agitando as mãos para cima falando o que? apenas com os lábios, mas quando ela começou abrir o portão a mensagem se tornou clara.
  Após fechar o portão atrás de si, ela atravessou a rua correndo fazendo sinais para que eu abrisse o meu, mais uma vez briguei com o ferrolho, esfolando os dedos enquanto tentava desesperadamente abri-lo para a garota que, do outro lado das grades sussurrar e me xingava exasperada.
Quando finalmemte a tranca soltou-se para cima e o portão escancarou-se, ela mergulhou para dentro e o fechou, me jogando para o lado no processo.
A salvo, ela suspirou e me olhou dentro do capacete.
- Por que está usando essa coisa?. Disse ela de cenho franzido.
Me sentindo um idiota comecei a tira-lo.
- Podemos entrar?.
- Claro. Respondia rápido.
Ela foi na frente e adentramos a casa.
A sala estava uma bagunça, o sofá a estante da televisão e a mesinha de centro jaziam amontoadas ao lado da porta, com um tapete embolado num canto feito um pergaminho. esquecido. Manchas de sangue salpicadas no piso da entrada até o centro do aposento. Confesso que andei menosprezando a limpeza, por isso naquele momento um leve rubor cobriu meu rosto.
- Você tem algum remedio?. Perguntou ela, ignorando o caos do lugar e se dirigindo a cozinha, enquanto caminhava as pontas de seus cabelos escuros dobravam-se e acariciavam de leve os lóbulos de suas orelhas. - Algum antibiótico ou anti-inflamatório?.
- Não sei. Falei, seguido-a.  - A gente tem uma caixa aonde guarda todos os remédios, vou pegar.
Fiquei nas pontas dos pés e abri a porta do armário da cozinha, puxe a caixa e larguei-a sobre a mesa. A garota enfiou as mãos nela e revirou o conteúdo diversas vezes, insatisfeita.
- Só tem remédio pra dor antitérmico. Falou me olhando. - Não tem mais?.
- Não. Por algum razão, fiquei desapontado por não ter o que ela queria.
Ela suspirou e se largou numa das cadeiras, ouvi um ruído metálico quando o revólver no seu quadril acertou o encosto.
- Você era minha ultima esperança. Disse ela, afundando sobre a mesa as mãos no rosto.
Nervoso, me sentei ao lado dela notei restos de um esmalte azul escuro em suas unhas roídas.
- Qual o seu nome?. Perguntei um tanto sem jeito.
Sem se mover, ela respondeu.
- Joana, o seu?.
- Caleb, pra que precisa de remédio? Tem alguém com você?.
- Me desculpa... Eu praticamente invadi sua casa sem qualquer explicação, é meu pai, ele tá machucado e a ferida infeccionou e piora a cada dia.
Engoli em seco.
- Ele foi, mordido?.
De repente ela afastou as mãos do rosto e me fitou, com desafio, medo, ódio e um pedido de ajuda inflamando seus olhos.
- Não! Ele foi baleado, ele é da brigada militar, ou era, ele disse que um maluco atirou nele quando tentava impedir que assaltassem uma loja. Foi logo no primeiro dia. Todo mundo piorou e, você sabe... Esta arma é dele. Apontou para o quadril.
 - Sinto muito, e como vocês foram parar na casa do meu vizinho? São parentes deles ou coisa assim?.
 - Bom. Ela afastou o olhar. - Na verdade, não, a gente tava fugindo do centro depois que ele foi baleado, mas a rodovia ficou bloqueada por um acidente, por vários, e tivemos que descer do carro, andamos até essa rua, meu pai não suportava mais a dor na perna, e havia a daquelas coisas atrás de nós. Aquela era a unica casa aberta e não tivemos escolha. Era invadir ou morrer. Seus labios crisparam-se amargos. - Acho que isso nem importa mais, os donos já devem estar mortos, de qualquer forma.
 Pensei na menininha de cachinhos, filha dos meus vizinhos, transformada, vagando por aí como um desses monstros, e uma mão gelada apertou meu coração. A garota parecia notar.
 - Sinto muito, não deveria ter dito isso.. Eles eram seus vizinhos e tudo mais.
 - Tudo bem, você deve estar certa, mas não precisam de mais nada? Comida? Água? Não tenho muita, verdade, mas posso dividir um pouco.
 - É muita gentileza sua. Um pequeno sorriso floresceu nos cantos de seus lábios rachados. - Sinceramente, seus vizinhos não deixaram muita coisa para trás, faz dias que só comemos ovos crus, meu pai disse que logo criaremos assas e poderemos sair voando daqui.
Enquanto sorriamos, compartilhamos um breve momento longe das sombras, que me fez lembrar dos dias despreocupados e subestimados os quais vivi na completa ignorância de minha alegria. Mas esse momento logo se dissipou. Joana disse que precisava voltar para o pai, não gostava de deixa-lo sozinho, ferido daquele jeito.
Peguei uma sacola e enchi-a com alguns pacotes de macarrão, feijão, arroz e molho de tomate. Também inclui duas das cinco garrafas pet com água da geladeira.
Pouco antes de nos despedirmos, quando já estavamos do lado de fora da casa, ela me perguntou algo.
- Tem alguma farmácia por aqui?.
Subitamente lembrei do Local.
- Tem sim, uns cinco quarteirões pra la, bem numa esquina, farmácia litoral, mas considerando essas coisas lá fora ainda é longe demais, sinto muito... Mas não desanime, vamos pensar em algo.
- Entendo, relaxa... Se precisar falar comigo, só amarre um papel numa pedra e joguei no meu quintal ou algo assim.  Ela me dedicou um ultimo e breve sorriso. - Por mim e pelo meu pai, muito obrigada mesmo, se cuida Caleb.
Enquanto se afastava, pensei no quanto desejava abraça-lá, não por alguma volúpia reprimida, mas pelo simples desejo de sentir o seu calor humano. Então pensei em Elice e no fato de que talvez jamais viesse a abraça-la de novo, e precisei agarrar as lágrimas nos olhos. Ajudei Joana a abrir o portão e observei as duas criaturas ao lado até ela entrar em casa, em segurança.
E foi isso, apesar dos meus recursos terem sido reduzidos quase pela metade e de uma voz e minha cabeça sussurrar constantemente que o que fiz foi estúpido, pelo menos agora possuo uma amiga, com a qual posso contar. Só de termos trocado essas poucas palavras um fardo gigantesco fora removido dos meus ombros, no entanto, é curioso, imaginei que toda essa situação me deixaria mais egocêntrico, mas parece ter ocorrido justamente ao contrário. Bem, esse é só o começo. Não há como dizer como alguém sera afetado a longo prazo, por tudo isso.
Bom, acho que isso é o bastante por hoje, finalmente no meio dessas trevas todas a um raio de esperança.

Hoje não sinto uma necessidade de citar uma regra, mais é importante lembrar que...

Regra.8
Não estar sozinho é importante. Pense, você já tem os zumbis como inimigos não deixe que outros sobreviventes sejam inimigos também.

Diário De Um Sobrevivente - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora