Do Outro Lado

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7 de Agosto de 2022

Não decorreram sequer duas horas desde que saimos e já estamos descansando no pátio de uma casa qualquer. Foi um trajeto tão minúsculo, algo em torno de dois quilômetros, mas sinto como se tivesse atravessado um campo de batalha no meio da segunda guerra mundial, com convites para a morte voando de todos os lados, e sequer alcançamos a pior parte.
Nessas circunstâncias, é incrível como Levi consegue manter o sangue frio, o filho da mãe esta cochilando, estendido na varanda dessa casa desconhecida, como se fosse um passeio no parque. Enquanto isso, estou sentado na grama, com as costas apoiadas contra o muro, incapaz ate mesmo de piscar, pois, do outro lado desses tijolos, talvez esteja minha morte, mas estou me adiantando.
Saímos muito cedo pela manhã, o sol mal pintara de laranja a cidade, Levi e eu já nos encontrávamos na frente de casa, a mochila e revólver comigo, o martelo, jaquera de couro e capacete com ele.
- Preparado?. Perguntou, segurando o ferrolho.
Assenti e ele abriu o portão.
O corpo do monstro que eu matara continuava ali, caido numa poça de vermes. Cobri a boca e nariz devido ao cheiro pestilento e avançamos.
Assim que pisei sobre a calçada, foi como entrar em outra dimensão. Qualquer sensação de segurança que havia do lado de dentro dos meus portões, se dissipou totalmente lá fora. O perigo pareceu emanar de todos os cantos ao sufocar a atmosfera, era quase palpável, meu próprio corpo de repente parecia pesar mas. Apesar disso não havia como voltar atrás.
Olhando a todo momento para o lados, corremos até o carro estacionado sobre a calçada do vizinho, um sedã vermelho, coberto por uma camada de sujeira que o tornava quase marrom. Se tivéssemos sorte, poderíamos usá-lo para percorrer pelo menos parte do caminho.
Nem havia nenhum morto-vivo por perto, mas meu coração parecia prestes a rachar as costelas.
Levi deu a volta no carro, até a porta do motorista, e tentou abri-lo.
- Merda. Ouvi-o dizer. Estava com a viseira do capacete erguida. - Trancado, vê a outra porta.
Me apressei ate a porta do carona, agarrei a maçaneta e puxei. Ela abriu. Não preciso dizer que esse foi um erro estúpido, no mesmo instante, um alarido proveniente do alarme explodiu em meus ouvidos. Levantei a cabeça e encontrei os olhos esbugalhados de Levi do outro lado.
- Corri!. Gritou, avançando velozes na direção da esquina.
Segui-o o melhor que pude, mas o peso da mochila me atrasava e eu estava sem a jaqueta e cada vez mais suor e Levi cada vez mais longe, e Jesus, talvez ele fosse me deixar para trás!.
Antes de fazer a curva para outra rua, no entanto, ele parou e jogou as costas contra o muro, a caminhonete azul jazia a sua frente, rente a calçada.
- O que foi? Porque parou?. Perguntei aterrorizado ao me aproximar. Aquele alarme parecia ecoar por toda maldita cidade.
Levi sorriu, suor descia pela sua testa
- Tem três deles vindo pra cá.
- O que a gente faz?.
- Calma, vem. Ele deslizou para a traseira da caminhonete.
Quando as três criaturas passaram rosnando ao nosso lado, totalmente focadas no barulho do alarme, meu coração quase parou. Reparei que um deles era um garoto, uma criança de não mais de cinco anos, estava sem os dois braços.
Assim que se distanciaram e começaram a rondar o sedan, no maior silêncio, nos descemos da traseira e fizemos a curva na primeira esquina, demos de cara com um deles.
Era uma mulher velha, usavam um vestido floreado e arrastava uma bolsa presa por uma ausa em sua perna. Levi praticamente esbarrou nela, e os dois caíram cada um para um lado. Com as mãos tranformadas em geléia, puxei o revolver e apontei para ela.
  - Não!. Disse Levi, levantando.
A velha soltou um berro animalesco e ficou de pé, com os dentes amostra babando um líquido negro. Veio na minha direção, Levi abaixou a viseira e como um touro investiu contra ela no meio do caminho. O corpo da velha chocou-se com o muro de pedra, e antes que ela pudesse reagir ele sentou em cima dela e desferiu-lhe uma dúzia de marteladas na cabeça.
Quando terminou, o rosto da mulher era irreconhecível, espalhado pela calçada e ele havia feito aquilo sem o menor sinal de hesitação. Jesus.
- Madura como melão no final da temporada. Disse sorridente e ofegante, puxou um pano do bolso da jaqueta e limpou a viseira. - Vamos.
Não demos muita sorte com os outros carros nas ruas seguintes. Com medo de algo semelhante acontecer, procuramos algum que já estivesse aberto, mas esses ou estavam sem gasolina ou com a bateria morta, por isso seguimos apé através da ruas secundárias sempre seguindo o mapa desenhado por Levi. Quando encontravamos um grupo de infectados, tratavamos de nos esconder, às vezes nos obrigando a saltar para trás do muro de alguma casa, a maioria delas estava trancada sem o menor sinal de presença humana, mas em algumas vimos sangue pelo chão através das janelas abertas, e as evitamos.
Também encontramos cadáveres, muitos, jogados pelas ruas, servindo de refeição para cachorros à maioria era de mortos-vivos abatidos, mas havia outros de pessoas devoradas a ponto de sequer poderem retornar, e dois ou três de gente morta por outras pessoas, com marcas de tiro ou pancadas, sem sinal de infecção.
O cheiro de morte e podridão era onipresente, mesmo depois de arrancar dois pedaços de algodão do casaco e mantê-los nas narínas, eu conseguia senti-lo; parecia adentrar a pele e correr em minhas veias. Se aquela, uma das zonas periféricas da cidade estava daquele jeito, qual seria a situação da zona para qual estamos indo, bem no centro, onde ficava a casa da Elice. Preferi não pensar nisso.
Mais ou menos uma hora depois, decidimos descansar. Ter que ficar correndo, pulando muros, escondendo-se, além de desgastar fisicamente, deixava-nos com o psicológico em frangalhos. Eu permaneci o tempo todo torcendo pescoço, os olhos saltando das órbitas, imaginando se não haveria um deles atrás de cada placa, beco ou carro.
Mas os cachorros me assustavam, com seus olhos inocentes e fucinhos sujos de sangue humano.
- Logo ele vai tomar gosto por carne humana. Dizia Levi, quando um cachorro se aproximando para nos cheirar. - E ai, teremos mais um predador para nos preocupar. Então deitava um olhar sombrio sobre o animal. - Talvez eu devesse rachar a cabeça dele agora e nos poupar do trabalho.
Mas ele não o fazia, mandava-os embora com chutes e prosseguiamos pelo caminho.
Sem demora, chegamos em uma avenida. Não havia jeito de evitá-la. Precisávamos atravessar para o outro lado caso quiséssemos continuar o caminho.
Nos aproximamos cautelosamente do final da rua, que se bifurcava como um T para a avenida, com o objetivo de examinar melhor. Pulamos para o quintal  da casa da esquina e demos a volta nela. Nos fundos, subimos novamente no muro e dali, observamos nosso primeiro obstáculo.
Havia duas pistas, separadas por uma mureta de concreto. Nelas, os carros espalhavam-se desordenadamente, abandonados, batidos. Olhando além, podia distinguir um grotesco acidente, com a cabine de um caminhão enegrecida apontada para o céu como um dedo indicador.
Os seres vagavam ao acaso por aquele caos, como máquinas em modo de espera, contribuindo para tornar tudo ainda mais inacreditável.
Eram homens, mulheres, velhos, crianças, todos sujos, com as roupas rasgadas e manchas de sangue, as peles pálidas, cobertas por veias.
- Como vamos passar por isso?. Perguntei a Levi, descendo do muro. Aqueles monstros estavam por todo lado.
Ele me olhou exibindo os dentes num sorriso macabro.
- Á ferro e fogo, parceiro.
Engoli em seco e dediquei outro olhar ao inferno estendido sobre as duas pistas.
- Deve ter outro jeito. Falei, aquilo era morte certeira.. Ele não podia estar falando serio.
- Bom, se tiver um par de assas escondido ai, essa é a hora de revelar.
  - Realmente quer atravessar aquilo? Olha quantos tem! Não dá, Levi... Não dá!.
Ele agarrou uma das garrafas de água da mochila e a bebericou, então me fulminou com o olhar.
- Para de ser um marica, esqueceu o que viemos fazer?.
Me encolhi detrás do muro, segurando meus cabelos. Estamos mortos, pensei, rindo nervosamente. Mortos.
Levi acaba de acordar da soneca. Levantou a cabeça, olhou ao redor parecendo desorientado, então me viu e perguntou quem eu era. Esse sujeito...
  Estamos indo, não consigo acreditar. Realmente vamos cruzar aquilo. Levi esta com uma expressão medonha, algo me diz que ele está adorando isso. Por que diabos estou seguindo esse cara? Talvez eu tenha enlouquecido, afinal.
Que os deuses tenham piedade de mim, pois aqueles seres não terão.

Deus abençoe os caipiras: são bem armados e prontos para botar para quebrar. Fique por perto.

Regra.16
Esqueça o carro, ande de bicicleta ou apé ( lembre-se você é um sobrevivente, a sorte não esta ao seu favor) - Procure o abrigo certo: essa é a chave da sobrevivência. Ninguém quer morrer dormindo quer?.

Diário De Um Sobrevivente - ConcluídoOnde histórias criam vida. Descubra agora